Sincronía Invierno 2001


UMA SITUAÇÃO DE PALAVRAS   (Entrevista a Floriano Martins)

Jorge Lucio de Campos (Rio de Janeiro, 1958)


Obra poética:

Arcangelo. Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1991. Prêmio UERJ 40 anos.

Speculum. Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1993.

Belveder (Poemas: 1988-93). Diadorim. Rio de Janeiro, 1994.

A Dor da Linguagem. Sette Letras. Rio de Janeiro, 1996.

À Maneira Negra. Sette Letras. Rio de Janeiro, 1997.

Abraçar Ordenhar Aleitar. Edições da Agulha/EbooksBrasil. Dezembro, 2001. Coleção Resto do Mundo.

Lição de Alvura (inédito)

Ausência de Lis (inédito)

 

1) René Magritte certa vez apontou uma incoerência em Heidegger entre suas preferências e a maneira como escrevia a respeito delas. Usava então como exemplo seu amor declarado por Hölderlin: "Fala do significado filosófico dos poemas e a essência da poesia que quer definir refere-se a outro conhecimento distinto do poético que não nos é necessário definir". O que te parece ser necessário definir em se tratando de poesia?

R. A poesia, para mim, não define outra coisa que o próprio pensamento. Gostaria de deixar bem claro aqui o que entendo, contudo, por pensamento, ou seja, menos a costura racional dos conceitos do que todo e qualquer impulso de interpretação das coisas rumo à fabricação de seu sentido. Tal ato de fabricação a que me refiro é aquele que se mostra, por sua vez, tão intenso e matizado a ponto de perfurar, como uma seta, nossas experiências psicológicas e (mais do que nunca) nossas percepções sensíveis, não embotadas, das parcelas de realidade que julgamos, adiante, poder remontar sob o precário nome de ‘mundo’. Em minha opinião, a experiência poética se dá tão-somente quando nos permitimos (ou nos é consentido) contemplar, desinteressadamente, o que nos cerca, nos toca ou atrai nas (infelizmente cada vez mais) raras ocasiões em que conseguimos, urbanamente, nos desvencilhar do abraço mortal do que se poderia chamar, na esteira de estudiosos como Debord e Baudrillard, de ‘espetáculo’ ou ‘hiper-realidade’, ou seja, dessa elisão homogeneizadora do real que as próteses tecnológicas (em particular, as que envolvem a visão) nos impõem de um modo, ao mesmo tempo, astucioso e insolente.

A minha concepção pessoal do ato poético deve-se a poucos, entre eles, Nietzsche e Heidegger. Toda vez que penso em definição, no que tange à poesia, não consigo deixar de me remeter às idéias de fluxo, potência, campo de forças. Por outro lado, também não consigo furtar-me a construtos heideggerianos como essência, saber, verdade... Decerto, mais ainda do que o pensamento, é a própria realidade que a poesia se propõe definir: seja como profundidade, espessura ou ‘totalidade’ intuída. Entretanto, o calor que as coisas expelem – no momento exato que com ela nos conectamos, de uma forma aberta e direta, sem outra intermediação que a de nossa própria sensibilidade – indica a sua precariedade, digamos ontológica, intrínseca... A percepção poética é sempre instável e incompleta. Diria que é, antes, ‘estabilizante’, ‘completante’ de si mesma, pois demanda o improviso da palavra, a busca de uma materialidade que, via de regra, julgamos mais adequada para a expressão de nosso pensamento acerca daquilo que ‘seja’, sendo que ela mesma nunca se arremata visto se lançar, continuamente, para a frente, rumo a um gesto vertiginoso de completamento que não se basta.

Creio que a linguagem poética é milenar exatamente por isso: por preencher, como nenhuma outra via discursiva, essa experiência ‘quente’ de um mundo eternamente ‘capturável’ em seu esplendor de (falsa) totalidade. O poeta intui o que o cientista e, mesmo, o filósofo não conseguiram com suas descrições minuciosas, universalistas, idealizadoras e, mais ou menos, competentes. Por isso, a poesia conseguiu resistir, até agora, a todo tipo de rigores e armadilhas. Com certeza, persistirá muito tempo ainda – na condição híbrida de incômodo e dádiva – ao menos enquanto persistir no homem a consciência de sua condição de ‘honesta’ humanidade, isto é, a de um ente que sabe ser fadado à imperfeição.

 

2) Muitos comentaristas de tua poesia destacam um diálogo íntimo seu com a imagem plástica. Como lidas com a relação entre as imagens e a escolha das palavras para descrevê-las?

R. Tenho buscado, desde minha mais remota produção poética, este diálogo, mas ainda não estou certo de tê-lo realizado como deveria, poderia ou gostaria. De qualquer modo, a minha concepção de poesia é ampla o suficiente para que nela também caiba a minha paixão pela pintura. Desde cedo, aprendi a admirar poetas e pintores em cuja obra pude detectar um espaço adequado para tal diálogo. Entre os poetas, os primeiros que me chamaram a atenção foram Murilo Mendes, Tzara, Williams, Stevens, Marianne Moore e Ashberry. As poéticas ditas ‘pós-modernas’ também se tornaram objeto de minha curiosidade (por que não dizer desejo?), mas isso já no início desta década. A curiosidade logo deixaria de ser meramente acadêmica para tornar-se visceral. O contato com o trabalho de alguns pintores contemporâneos norte-americanos como Eric Fichl, Mark Tansey e David Salle, veio reforçar um espontâneo apego pela relação, entre poesia e imagem pictórica, que eu já nutria desde a década anterior, quando passei a conhecer melhor (sou professor de Estética e de História da Filosofia e da Arte) o dadaísmo e o surrealismo (no caso, a partir, principalmente, dos quadros de Schwitters, de Chirico e Magritte). Na ocasião, esbarrei com imagens de tal modo eivadas de poeticidade e vigor conceitual que não poderia ficar impassível diante delas.

Como tive a oportunidade de esclarecer numa outra entrevista, a relação que venho fomentando em meus poemas não quer ser a da simples ilustração. De pouco adiantará ao leitor a checagem, pura e simples, das telas (e outras dicções alheias, já que também cito poemas e até canções) a que meus títulos remetem. Não se trata nunca ali de captar, com a palavra, a poesia da imagem ou, antes, de descrevê-la textualmente, mas de transcriá-la num processo de dupla captura. O objetivo sempre foi gestar uma espécie de ‘transpoesia do pictórico’ na mesma proporção que os pintores citados acima tentam gestar uma espécie de ‘transpintura do poético’ (é importante atentar para a definição de poético que formulei anteriormente). A referência-chave aqui seria o que Deleuze propõe como ‘dispositivo figural’ em seu ensaio sobre a pintura de Bacon (Francis Bacon - Logique de la Sensation, Éditions de la Différence, Paris, 1981). Mais do que explorar uma possível continuidade discursiva entre texto e imagem, busco extrair a capacidade (potencialidade) ’textual’ da imagem nela mesma, o que, de modo algum, implica em qualquer tipo de redução ou engolimento de uma pela outra.

 

3) Borges observa uma distinção entre Joyce e Mallarmé no sentido da relação com a linguagem como um jogo. Para Borges, Joyce se divertia enormemente com a criação: "as aliterações, as consonâncias, são para ele um jogo, um belo jogo, do qual se ri". Por outro lado, seguindo seu raciocínio, Mallarmé não se divertia em nada: "Sente-se sempre o esforço. Sente-se que está demasiado consciente do que faz". Como te relacionas com tal distinção entre jogo e consciência?

R. Não me parece fácil distinguir entre uma coisa e outra. Não tenho dúvida de que todo autor – e não só Mallarmé, Joyce ou qualquer outro dos chamados ‘transgressivos’ – tem plena consciência do grau de loucura e agressividade que consegue conferir (quando é o caso) às suas soluções poéticas (não comungo, com alguns críticos, a crença numa hipotética ‘isenção’ do Autor em relação à Obra). Agora, se conseguirão extrair de seus atos certa dose de divertimento ou bom humor é uma questão totalmente outra. Deleuze aludiu algures às gargalhadas de Kafka, acerca dele próprio e do que (e como) escrevia, quando na presença dos amigos mais chegados. No entanto, ninguém parece mais circunspecto do que ele na galeria de retratos da moderna literatura européia. Como Borges soube melhor do que ninguém, a relação com a linguagem como um jogo só pode ser viabilizada a partir de uma conscientização plena de seus poderes perversores. Por outro lado, é sabido que tal conscientização, sem dúvida, nos libera de uma série de bloqueios, o que certamente nos torna mais leves e predispostos ao riso, a acentuar o aspecto lúdico-libidinal das coisas.

Veja bem: Mallarmé nunca me pareceu menos hermético do que Joyce, nem suas inversões sintáticas menos insólitas que as propostas pelo irlandês. Uma antiobra como Igitur ou La Folie d’Elbehnon pode ser muito divertida se considerada como a maioria encara, por exemplo, o Finnegans Wake. Mesmo Borges, que muitos acham um autor bem-humorado, amiúde não consegue disfarçar que uma dimensão trágica e infame subjaz em seu texto. Creio que tudo isso depende mais da recepção da obra do que das intenções do autor. No meu caso específico, nunca considerei muito divertido driblar, ao escrever poemas, as habituais possibilidades expressivas da linguagem. Sob este prisma, creio que me identificaria mais, aos olhos borgianos, com Mallarmé, pois o esforço da manipulação das palavras é demasiado árduo e as possibilidades de sua boa assimilação pelo leitor (de haver, no caso, uma efetiva comunicação entre escritor e leitor) mínimas, o que é frustrante e, portanto, doloroso. Algumas vezes (não muitas), devo confesso, porém, que consigo rir do que escrevo (e também por perder grande parte de meu tempo, escrevendo) e desta situação de inércia intelectiva e embotamento sensorial que, infortunadamente, necrosa a nossa cultura. Trata-se de um riso nervoso, é verdade, que, no meu imaginário, deve se assemelhar com o que acometia Joyce e fez com que Mallarmé o introjetasse.

 

4) Ao comentar teu Arcangelo (1991), João Guilherme Quental diz-se tomado por um certo espanto diante da precisão e do rigor com que te mostras em um livro de estréia. Talvez devesse espantar mais o que os poemas expressam, como no caso de "Enigma" e "Elegia". No entanto, observo que tua estréia em livro, aos 33 anos, é a de um poeta que vem há algum tempo amadurecendo visão de mundo e experiência com a linguagem. Em tal sentido, o que andavas fazendo até o momento da publicação do primeiro livro?

R. Comecei a arriscar poemas aos quatorze ou quinze anos. Foi a via que, primordialmente, escolhi para uma primeira incursão consciente ao simbólico. Antes (e depois) alimentei o ideal da música, da pintura... mas o que efetivamente me impactou foram os dispositivos literários. A leitura programada de Verne, Bandeira e Drummond, assim como o encontro precoce e clandestino com Bocaccio e Poe, deixaram marcas indeléveis em minha sensibilidade. Optei cedo pela poesia, mas não posso deixar de registrar uma outra territorialidade vital em minha formação: a filosofia. Sua descoberta se deu por volta dos dezoito anos e ela virou uma espécie de lente sem a qual não consigo mais enxergar o que há de nuançado na realidade, como um processo furta-cor. A química da poesia e da filosofia se viu reforçada, quatro ou cinco anos depois, por um flerte (hoje assumidas núpcias) com a pintura que, consolidando em mim um gosto pelo contemporâneo, vem me incendiando nos últimos quinze anos. Hoje não consigo mais desmembrar essas três territorialidades matriciais: poetizar, pra mim, significa pensar, assim como refletir significa imaginar e visualizar, revolver a linguagem, entrar em seu jogo de acolhimento simultâneo do ver e do dizer.

Assustado com o pouco caso das pessoas, preservei minha primeira produção, praticamente quis esquecê-la, mesmo ignorá-la... Contudo o acaso acabou trazendo-a à tona, graças à convivência com algumas pessoas que se prestaram a, mais do que lê-las, ‘compreendê-las’. Fiquei, na época, surpreso com o reconhecimento dali advindo e, de lá pra cá, venho assumindo este misto de inclinação, vício e vaidade. Tudo passou a ser uma questão de investimento e amadurecimento. Desde a publicação de Arcangelo (com o qual venci um concurso literário promovido pela UERJ), em 1991, lancei quatro coletâneas: Speculum (1993), Belveder (1994) – na qual, à guisa de Borges, optei por recopilar, rebatizar e reescrever parte do que já escrevera – A Dor da Linguagem (1996) e À Maneira Negra (1997). Entretanto, a primitiva sensação de embotamento não foi ainda superada. De 1998 para cá, preparei mais três coletâneas: Lição de Alvura (1998), Devoração (prosa poética, 1999) e Ausência de Lis (2000) que continuam inéditas. Nenhuma editora se interessou por elas a não ser no esquema ‘pagou-publicou’ que, sinceramente, já não consigo mais tolerar. Hoje prefiro que permaneçam nessa condição, semi-ausentes (digo isso porque parte delas está disponível em minha página na Internet), até que se manifeste algum interesse ‘qualitativo’ em reproduzi-las. Sei que, assim, continuarei, como estou desde minha estréia, um pouco à sombra, meio no limbo, consideravelmente ignorado pela crítica, pela mídia e pelos antologistas. Hoje, porém, aos quarenta e um anos, não me importo tanto com isso, pois não necessito de incrementos externos para continuar escrevendo. Faço poesia por ter assim me compromissado com o que me cerca e não pretendo fazer concessões a respeito.

 

5) O mesmo comentarista refere-se a "alguma afinidade" de tua poética com a de Sebastião Uchoa Leite, embora considere distinto do bestiário de Uchoa o vigor simbólico que aplicas à tua seleta fauna. Haveria tal afinidade? Acaso te sentes vinculado a alguma família poética em particular?

R. A observação de João Guilherme é perspicaz e capta um detalhe revelador, porém circunstancial. Embora admire a poética de Sebastião Uchoa Leite, não creio de partamos de um mesmo vigor imaginal. Ele me parece mais antenado na vibração que as coisas produzem quando simplesmente ‘acontecem’. Isso o inseriria, a meu ver, numa poética mais ‘fática’, muitas vezes brilhante em sua habilidade em se conectar à ‘presentidade’ do tempo, à sua autoconstituição (crescentemente adulterada pela mídia) como fluxo de vivências. Entretanto, se tivesse que me referir a uma ‘família’, remeter-me-ia, de preferência, a uma que enfatizasse a suspensão do ‘fato do tempo’.

O que, em verdade, busquei desenvolver em minha produção pessoal foram conceitos e sensações (assim como ‘conceitos de sensações’ e ‘sensações de conceitos’) relativos ao que, no entorno, me passa sentido, mas situando-o no abismo da própria linguagem, embora hoje me pareça cansativo, pura e simplesmente, insistir nos apelos de sua materialidade fácil. Tento ser o mais criterioso possível no tratamento da palavra, porém ela não atrai por si mesma, a não ser como um domínio onde é (ou se torna) possível instituir uma linguagem ‘outra’, uma espécie de linguagem intestina à própria linguagem, que consiga sintetizar, como uma grammaire générale, todas as racionalizações e sensações que as leituras superficiais deixam escapar pelos lados. Tal domínio, embora cifrado, se revela instigante se insistimos em escavá-lo, num acercamento em camadas, prospectivo, lento, porém seqüencial. Não conheço muitos poetas filiados a essa ‘família’. Creio que Creeley faz isso e eu o admiro bastante. Por aqui quem chegou mais perto foi João Cabral. Conheço, no entanto, vários artistas plásticos que perseguem (e atingem) este resultado. Talvez por isso ache que minha poesia deva tanto às artes plásticas quanto à própria literatura.

 

6) Em todos os teus livros há capítulos compostos por uma prosa poética que, a rigor, tem sido raramente praticada em nosso país – mencionemos os casos de Américo Facó, Augusto Meyer, Murilo Mendes, Cláudio Willer, Roberto Piva entre esses raros que a ela se dedicaram – constituindo-se um verdadeiro gênero de exceção. Sua ausência não poderia ser vista como contraditória em uma modernidade fundada, entre outros aspectos, em uma ruptura de gêneros?

R. Acredito que sim. Afinal de contas, a energeia da prosa poética funda-se, justamente, na ambivalência de sua usinagem discursiva, em sua capacidade ‘oximórica’ de transcender os limites habituais do que se diz (ou do ‘como’ se diz). Aprendi a admirá-la cedo, não a partir dos Petits Poèmes en Prose, de Baudelaire, ou de Les Illuminations, de Rimbaud, mas de experiências doloridas com Kleist, Lautréamont e Kafka. Desde então – e a partir da contaminação dadaísta e por Char, Ponge e Bonnefoy – venho me deixando atrair, crescentemente, pela estética do fragmento não só na literatura, mas por toda parte... Não escondo minha inclinação por poetas que conseguem dizer o máximo com o mínimo necessário. Admiro a concisão na mesma proporção em que admiro a ‘figura’, ou seja, a capacidade de falar longinquamente das coisas, sem deixar de produzir um pensamento terrivelmente próximo delas. Pude apreciar isso, recentemente, no trabalho de Norma Cole, uma poetisa canadense que vive nos Estados Unidos. Gostaria de fazê-lo mais.

 

7) Em A Dor da Linguagem (1996), te pronuncias, à guisa de prólogo, mencionando uma investida recorrente "em velhos cacoetes", o que de alguma maneira estaria impedindo que alcances a "identidade diccional" que buscas. Poderias nos falar um pouco acerca dessa identidade? Além disto, quais os motivos essenciais, Jorge, que te levam a escrever?

R. Preocupo-me muito em ser contemporâneo: em minha vida, em meu pensamento, em minha poesia... mesmo que, para tanto, precise atingir um nível quase insuportável de extemporaneidade. Digo ‘contemporâneo’, é claro, no sentido mais forte da palavra: o de estar ligado ao meu tempo, pensá-lo com seriedade, rir com ele (e não dele) de tudo aquilo que ainda lhe falta e ninguém vê... Problematizar a deriva de seu tempo, mesmo que este venha a deserdá-lo, eis o caminho certo, a rota a ser seguida por todos aqueles que fazem questão de ser contemporâneos.

Quando, no prólogo de A Dor da Linguagem, usei a expressão ‘velhos cacoetes’, quis me referir a uma obsessão que, na época, me parecia um grande obstáculo para a disseminação de meus escritos. Preocupava-me o fato de ser considerado um poeta hermético, de difícil comunicação, excessivamente acadêmico... Hoje, sinceramente, isso já não me incomoda. Creio ter explicitado antes, com clareza, as razões dessa mudança de atitude. De qualquer modo, a minha identidade diccional já está suficientemente delineada e só me resta assumi-la, lapidá-la, enraizá-la, cada vez mais, em minha produção futura. Como já disse, sentir-me totalmente ‘con-temporâneo’ em minha própria extemporaneidade, contribuir para que, em minha obra, a literatura de meu tempo, com efeito, se suponha, é o motivo que me leva a continuar escrevendo, apesar dos pesares...

 

8) No universo contemporâneo da poesia brasileira, quais as contribuições – não me refiro propriamente a nomes – que te parecem mais sólidas e pertinentes?

R. É da ordem do sensus communis que a sofisticação tecnológica crescente dos meios informacionais coloque em questão os códigos, digamos, mais ´tradicionais´ de percepção-concepção do real circundante. Se, de fato, os poetas ainda buscam (porque, de um modo imponderável, necessitariam) imitar o real, ou afundam numa faina paradoxal que os leva a diferentes níveis de mudez (considerando-se os muitos pios, murmúrios e gaguejos com que nos deparamos, em sua produção, amiúde como modalidades de dissimulação dessa mudez) ou, simplesmente, se deixam levar pelos meios-tons do jogo simulacional, o que os levaria, como também já foi amplamente dito, a um comportamento, sob certa ótica, bastante questionável.

A instrumentação crescente da própria poesia a partir de outras dicções poéticas, seria, atualmente, uma de suas mais marcantes características. O problema é como, no caso da tradução de versos, normalmente apenas os bons poetas tem se mostrado capazes de nutrir-se criativamente (e ao seu texto) com a experiência do alheio, estabelecendo esgarçamentos semióticos que poderíamos considerar válidos e enriquecedores. Em torno dessa vertigem intersemiótica, típica, principalmente, das últimas duas décadas, é que transitariam – num primeiro plano de visibilidade – de forma quase indiscernível, a competência e a incompetência de nossa produção atual. Afinal, citar criativamente ou criar através da citação não é tarefa das mais fáceis comparativamente ao citar por citar, caracterizado pela gratuidade aparente que esse ato revela. Os possíveis malefícios causados em um ou por um corpo possuído não devem, necessariamente, ser atribuídos aos fantasmas que nele se instalaram.

Os equívocos aos quais se atribui a fragilidade da cultura simulacional ´pós-moderna´ advém quase sempre das carências discursivas e do pouco amadurecimento simbólico dos que a produzem. O Modernismo de 22, a Geração de 45, o Concretismo, a Poesia-práxis e os Pré-modernismos têm sido apontados como alguns desses fantasmas que ‘assolariam’ a nossa (anti)produção atual. Contudo, a geração poética do ´neo´ (genealogicamente enfileirada em termos das décadas de 80 e 90) vem apenas acompanhando uma tendência típica de nosso Zeitgeist. Importaria muito mais, no caso, avaliar a sua capacidade de lidar, gerenciar os códigos deste espírito que assola, segundo alguns (ou abençoa, segundo outros), o nosso momento histórico.

O romantismo pôs no colo de seus escritores e pintores um desafio tão árduo quanto o de agora: buscar a originalidade pela originalidade em nome da genialidade pela genialidade e somente alguns deles (é claro que o número dos que tentaram e falharam decerto foi maior do que o dos bem-sucedidos) conseguiram, com efeito, processá-lo com eficiência. Hoje pode-se dizer que, se não ocorre o mesmo fenômeno, as diferenças também não chegam a ser tão decisivas. Diante da disseminação repertorial, cabe a cada um de nossos poetas decidir, sempre da maneira mais criativa possível, o que fazer com (e não estou me referindo à turba infinita das fantasmagorias de menor porte) os megaespectros de Cabral, Pessoa, Oswald, Cummings, dos irmãos Campos, ou de quem quer que seja. Importa saber, como corretamente afirmou Ivan Junqueira, que é no equilíbrio alcançado por uma coisa e outra (forma e conteúdo) que se revela o grande poeta. Um dos equívocos da poesia de participação social é justamente este: em nome de uma utopia humanitária desdenha-se da forma e, a partir daí, compromete-se a possibilidade de transmissão artística ou de fruição do objeto estético. Enfim, se somos artistas, não podemos jamais renunciar à beleza em que consiste o matrimônio indissolúvel entre forma e fundo.

Do período paleolítico ao theatrum pós-moderno, de estrito servidor da sociedade (cf. figuras do artista-feiticeiro, do artista-sacerdote, do artista-cortesão e do artista-funcionário, entre outras) ao confortável status de franco-atirador ou de usufrutuário-manipulador de simulacros lúdicos, o artista continuará sendo ainda assim, segundo Jean Cassou, já alguém em que se apercebe uma singularidade específica e a obra que produz pode(rá) ser por nós (de algum modo) desembaraçavel de significados e intenções para nos aparecer como uma obra de arte. A fuga da estandardização seria, portanto, um critério consistente para avaliar, em termos qualitativos, a atual produção poética brasileira. Não são muitos os que tem demonstrado esse dinamismo em suas coletâneas. Como não poderia deixar de ser, a maioria, em sua condição in progress, esbarra em suas próprias indefinições, desinformações e mesmo em arroubos esteticamente inócuos. Não são muitos também os que ousam, optando pelas vias da transgressão e da transcendência, ou melhor, pelas vias da densidade transgressiva e, algo paradoxal (mas apenas à primeira vista), da positividade transcendental. Afinal, estas vias estão entre as mais árduas e, ainda por cima, as próprias idéias de transgressão (assim como a de experimentação) e transcendência se viram anodinizadas pela de seu simulacro e hoje transgredir e transcender são, com freqüência, no mínimo práticas vazias e gratuitas e, no máximo, algo vetusto e enigmático aos olhos mais jovens.

A questão que ora parece se impor, de maneira imediata – quase premente e por dentro – na poesia brasileira contemporânea, é a mesma que se pretende também urgente fora dela: na prosa, no pensamento, nas falas, nos hábitos... Importa, enfim, decidir logo entre duas estratégias de deslocamento (não implicando nenhuma delas o que, no caso, deveria ser levado em conta, ou seja, o afrontamento). Boa parte de nossos poetas mais jovens vem se embaraçando com um penoso dilema: recuar ou avançar? Poucos são os que se colocam a hipótese mais ‘inteligente’ de vencê-lo, permanecendo no código, retomando-o com paciência – aos poucos, mas sempre – na medida de suas necessidades intrínsecas de (re)dinamização; (re)operando-o no presente, na potencialidade inesgotável do agora.

Em verdade, não são muitos – nunca foram ou deverão ser – os poetas que podemos considerar excelentes. Se fosse possível definir o lançar poético como um risco (assim como todos os demais lançares discursivos, aí inclusos os escritos e os não-escritos) – um que envolveria o descortinamento dos próprios mistérios pessoais mediante a via equilibrante do rigor – então não poderia restar dúvidas quanto a isso. Se, por um lado, é alto o número dos que se arriscam, irresponsavelmente, na gratuidade do gesto de quem apenas pensa porque pensa ou anseia porque anseia fazer poesia, expondo-se, amiúde, ao ridículo e ao rebaixamento, pelo outro, são raros, felizmente, os que se arriscam no sentido proposto e é mais do que normal (e saudável) que assim ocorra.

Como já tive a oportunidade de externar, numa outra ocasião, penso que o processo criativo (não só em termos poéticos) não pode, sob pena de se autodesqualificar, deixar de marcar uma invariável positividade, sendo criativo o artista que consegue conceder (direta ou indiretamente) à sua obra a capacidade de afirmação e instauração do sentido. Por detrás da complexidade da fatura da boa poesia (assim como da boa pintura, etc.), estão dois agenciamentos mínimos fundamentais: a intuição (o bom poeta é sempre aquele bem-sucedido na extração-captura ordenadora do sentido bruto-caótico das coisas) e a expressão (o bom poeta é sempre aquele que sabe expressar, adequadamente – de forma a torná-lo esteticamente compartilhável - o resultado 'concreto' daquela extração-captura). Dentro de tal contexto, a valoração de um poema se mostra, então, muito relativa. Depende, enormemente, dos elementos mínimos disponibilizados, no ato do encontro, pelo poeta e pelo leitor-avaliador de sua poesia. Isso sem contar com os aspectos psicológicos que, inevitavelmente, interferem no processo, acelerando-o ou estancando-o. A grande arte nunca foi e ainda não é da ordem das multidões, pois sua universalidade não pode ser 'fabricada', apesar do esforço, cada vez mais agressivo, dos meios de comunicação e dos agentes do mercado. A grande poesia é da ordem solitária dos indivíduos-neles-mesmos e de suas clandestinas partilhas interpessoais.

A meu ver, nas duas últimas décadas, algumas dicções iniciaram, em nosso país, a gestação de um instigante savoir-faire poético. Não costumo citar nomes e, portanto, não vou fazê-lo aqui, pois isso importará pouco num diagnóstico tão breve como este que proponho. Nomear, segundo o gosto, os meus ´bons´ e ´maus´ poetas, meus ´eleitos´ e ´desafetos´, meus ‘parceiros’ e ‘êmulos’ de nada serviria: antes soaria como um ato adicional de hipocrisia e amadorismo. Estou certo de que o ´competente´ tem percepção disso, assim como, quero crer, o ´incompetente´... Ambos, sendo minimamente espertos, não deverão jamais se iludir com a marcha oscilatório-impressionista da crítica constituída que, com freqüência, se verá tentada a manipulá-los e reterritorializá-los a seu bel-prazer.

Também não gostaria de recorrer a categorias ou, o que é bem pior, a rótulos. Muitos já o fazem, professoralmente ou não – bem-intencionadamente ou não – visando dotá-los, diante das massas, de uma visibilidade, aqui e ali, desnecessária, mesmo venenosa... Em minha opinião, falar de uma geração 80, ou de uma geração 90, não ajudará em nada, visto que concordo com a aferição, já feita por alguém, de que os poetas em questão não constituem nada parecido com uma geração - se é que isso, num tempo fragmentado e veloz como o de hoje, ainda pode existir. Existem laços pessoais, encontros em revistas e coleções, mas no geral o trabalho é solitário, como, aliás, deve ser mesmo.

Entretanto, em momentos como estes, de crise e impasse criativos, é que os rótulos costumam proliferar, inevitavelmente, ao sabor dos consensos plantados pela mídia. Neles, o prefixo ‘neo’ é usado a rodo. Fala-se, por exemplo e muito, de uma vertente neoconservadora (ou ‘metafísico-formalista’ ou ‘clássico-revisionista’, como alguns preferem, ou, ainda, de tudo isso ao mesmo tempo, num corpo único de idéias e efeitos), espécie de monstro de mil braços que, brandindo todo tipo de signos historicamente registrados, gritam: "eles ainda estão aqui; é preciso considerá-los sempre, respeitar sua longevidade"; fala-se muito também de uma vertente neoconstrutivista, atrelada ao epigonismo do som e da imagem, dos jogos da materialidade significante, intrinsecamente sectária do impacto das novas tecnologias da comunicação visual sobre a sensibilidade pós-moderna; e de uma vertente neotropicalista (ou ‘dionisíaca’, como querem outros), comprometida com a liberdade do traço e com o delírio da composição, que trataria a cultura como um farto mosaico a partir do qual sempre seria possível extrair fragmentos-cacos e rumar para novas (nem tanto assim) bricolagens poéticas, a nomadismos simbólicos em cujas deambulações, muitas vezes, dar-se-iam antes tropeços que achados; e, ainda, de uma vertente acadêmico-culturalista, mais atrelada a discussões conceitualmente setorizadas (como seria o caso, hoje, da questão dos gêneros, das etnias, do feminismo, da homoerotismo, etc.) do que ao fato poético em si, e que o ultrapassa, seguidas vezes, sobrelevando-o, ao tratá-lo como um mero veículo de expressão de tratamentos temáticos; fala-se ainda dos neomalditos, dos neo-engajados, de uma (com freqüência, não intencional) ‘má poesia’, antes envolvida com uma agressiva predisposição psicológica frente ao social do que com qualquer outra coisa e, dos seus antípodas naturais, os neo-esteticos, marcamente envolvidos com uma tentativa de preservação do ‘museu imaginário’, da perícia formal, enfim, da belle poésie...

Por conseguinte, no calor da construção desta fala, me permito dizer que a poesia concebida hoje, no Brasil, a exemplo do que ocorre em vários outras paragens, tem sido recorrentemente marcada pelo que chamaria, em caráter provisório, de fenda da indecidibilidade. Se como outros ainda afirmam, a criação poética envolveu sempre – e continuará a assim fazê-lo, em maior ou menor grau – um certo desejo de imitação da realidade, é natural que a fatura contemporânea reflita os percalços de um momento sociocultural simbolicamente tão marcado, como o nosso, por uma crise de percepção-concepção da realidade que, por sua agudeza, traz no bojo uma grave e inevitável crise de identidade.

 

9) No prólogo de Belveder (1994), Lucio Agra refere-se a "formas ultrapassadas", como se fosse possível uma leitura temporal das mesmas. O que te parece isto? Tais distorções, ao lado das esquematizações simplificantes, ao invés de uma leitura dos matizes que particularizam cada obra, não resultaria no estado pleno de degenerescência em que se mostra a crítica que circula hoje entre imprensa e livros no Brasil?

R. Creio que, por saturação, a crítica há muito já não justifica nem a própria etimologia. O que ela menos faz, hoje em dia, é ‘discernir’, ‘separar’ (cf. grego krinein). Há nela ressentimento e má consciência em demasia, assim como habilidade demais em disfarçar tudo isso com uma traiçoeira aura de encantamento estilístico, de teatralidade fácil e eficiência técnica... Houve um tempo em minha vida em que, francamente, apostei no valor ativo da crítica (como uma clara contraposição ao que considerava ser o papel inevitavelmente passivo do receptor). Hoje acredito bem mais no comentário, no desejo de acertar inerente àquele que comenta algo. Isso se ele (o comentário) se der espontaneamente e não a reboque de alguma demanda alienígena ou sentimento mortificador. Importa perguntar, como disse Deleuze, em sua carta-resposta a Michel Cressole: isso funciona: como é que funciona? Poucos se contentam com tão pouco. Menos ainda percebem a grandeza de tal ato.

Niterói, 19 de Julho de 2000


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