Sincronía Otoño 2002


UMA NOVA SITUAÇÃO DE PALAVRAS

(Entrevista a Rodrigo de Souza Leão)

JORGE LUCIO DE CAMPOS


Obra poética:

Arcangelo. Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1991. Prêmio UERJ 40 anos.

Speculum. Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1993.

Belveder (Poemas: 1988-93). Diadorim. Rio de Janeiro, 1994.

A Dor da Linguagem. Sette Letras. Rio de Janeiro, 1996.

À Maneira Negra. Sette Letras. Rio de Janeiro, 1997.

Abraçar Ordenhar Aleitar. Edições da Agulha/EbooksBrasil. Dezembro, 2001. Coleção Resto do Mundo.

Lição de Alvura (inédito)

Ausência de Lis (inédito)

Devoração (inédito)

Palimpsestos (inédito)

 

1) Há na Genealogia da moral, de Nietzsche, uma filosofia que vai além da história e chega a uma relativização antropológica. Nietzsche nos mostra como ocorreram diversos processos de inversão dos valores. Há um paralelo possível em arte? O surrealismo embrionário tornou-se um conceito tão carnavalizado que o fato de 'surreal' virar palavra da moda é um exemplo de como os valores podem ser transformados à moda nietzschiana ou a cultura pop subentende a massificação?

R. Nietzsche pretendeu, é certo, ir além da história. Atingir aquele ponto em que o fluxo do tempo não é mais do que um 'vento de ocorrências' para, em seguida, retornar a ela, com todo fôlego, mas sob a condição de conseguir dobrá-la, de modo a, expondo suas vísceras, explicitar também as regras de seu funcionamento, ali, àquele altura – o último terço do século XIX – já totalmente escamoteadas por um projeto universal de idealização. Hegel fizera, um pouco antes, da história, à maneira tutelar da filosofia das luzes, menos a catapulta de um projeto civilizatório teuto-europeu que o estilingue de seu programa de pensamento, de seu sistema de idéias, de suas convicções pessoais acerca do Homem, de Deus e do Mundo. Muita gente boa aderiu àquela grande pantomima, relutando em perceber o quão perigosamente matizado era o processo. Não por acaso, ele nominou o conhecimento de Absoluto, pois, segundo sua fabulação, seria ao longo da história, que o Espírito retornaria (ou se redimiria), exteriorizando-se de si para, em seguida, contaminado por novas materialidades circunstanciais, afundar (ou purificar-se) novamente nele mesmo.

Seríamos mantidos in totum nessa letargia, em pleno século XX, se não fosse pela inquietação de pensadores finisseculares como Kierkegaard e, um pouco adiante, Bergson. Os acontecimentos futuros se encarregaram de ser um ótimo espelho para uma melhor miração do passado, mas também para as piores miragens com que acabamos por nos envolver. Nietzsche sacou, felizmente, a artimanha e tentou revelá-la na íntegra, mesmo que submetendo-se a todo tipo de interpretações equivocadas, distorções maldosas e à ignorância intransigente de seus 'pares'. Contudo, fica a pergunta: por quantos anos suportaríamos, ainda, nossas próprios idealismos e ilusões, nosso padrão onírico de beleza conceitual? O que ocorreu depois demostrou o quanto veio a ser vital para a nossa dignificação simbólica (infelizmente uma minoria, hoje, tem consciência disso), naquele momento, o risco de relativizar-se (que, aliás, se deu a reboque de um relativização ainda maior: perante o mundo que nos cerca, macro e microcosmicamente, com Einstein e outros, entre eles, Planck, Herz, Lorenz, Fitzgerald...) e de desvencilhar-se (ou começar a aprender a fazer isso) de tantas imagens doces e confortantes, mas fantasiosas, semeadas, com cinismo, na trama dos séculos.

Em resumo, o que Nietzsche fez, fundamentalmente, foi, radicalizando o histórico da história, tentar equilibrar um jogo intestino, subliminar, cifrado ao extremo. As inversões de valores que sempre se deram, de um modo silencioso, desapercebido, passavam então a serem mais facilmente surpreendidas em sua concretude, como no teatro, é possível reconhecermos a peça-texto – infletida nas vozes dos atores que a implementam – numa investidura, amiúde de máscaras não-obedientes (Jarry, Satie, Artaud, Beckett, Ionesco, etc.). Nietzsche tinha consciência de que os homens nunca deixarão de fazê-lo, todavia agora com a obrigação de observar (theorein), consistentemente, a cena e, na maioria das situações, posicionar-se em relação a ela. É escorado em valores (ou melhor, em práticas discursivas, como propôs Foucault, ou em sentidos, no entender de Deleuze) – que eles constroem, destroem, alteram as configurações que designamos como realidades, ora saudavel, ora sinistramente – atos que podem alçá-los às nuvens ou empurrá-los, de vez, para a danação das coisas.

Nesse sentido, em A genealogia da moral, Nietzsche reconhece a origem de nosso intimo ressentimento numa valoração segundo o universal, assim como a nossa impotência diante das agruras, sofrimentos, afecções e pressões que integram, generalizadamente, o processo vital; a negação, em síntese, da estranheza da alteridade ("o inferno são os outros", arriscou Sartre). Este olhar invertido, pelo qual se avalia as possibilidades do fora a partir de um dentro programático, abre espaço para toda a negatividade típica da verdade em sua versão platônica, ou seja, seletiva e idealizada. Para Sócrates e Platão, todos devem ser e agir segundo um bem (agathón) e uma justiça (dikaiosyne) paradigmáticos que são, em via de regra, concebidos por uns poucos para serem investidos pelos demais, a maioria silenciosa, a fauna do parque...

Quanto aos surrealistas, me parece que, desde a sua fundação do movimento na década de 20 e, sobretudo, a partir da de 40, estiveram muito perto, não digo da armadilha dos modismos, mas de uma hipotética incorporação (na verdade, um quase esfacelamento, uma quase fagia) pelos homens da mídia. O seu assumido apelo ao contraditório, ao automático, ao catártico – como parte de um projeto geral de alheamento ao racionalismo – sempre esteve, de algum modo, à flor da pele das sociedades. Faltavam, fundamentalmente, uma ocasião propícia e uma capacidade mínima de agenciamento para os fatores humanos mais oscilantes. Experiências aniquiladoras do indivíduo – recorrentes, sobretudo, nas primeiras sociedades industrializadas (mas, em seguida, anodinizadas, com sucesso, através do disparo engenhoso de mecanismos variados, entre eles, os farmacológicos) – acrescidas à náusea civilizacional gerada pelas duas guerras, viabilizaram uma poética que, desde então, não cessou de ser visitada, de ser especialmente representativa do nosso modus vivendi. Fala-se de Hegel, de Freud e de Marx, quando são citados os referenciais teóricos de Breton, mas, para mim, é nos insights de Rousseau e de Nietzsche, no pós-romantismo ruinoso e experimental de Lautréamont, de Poe, de Nerval, de Baudelaire, de Laforgue, e na virulência pática de malditos do fin-de-siècle como Rimbaud e Jarry, que os manifestos se ancoram. Foi ali, entre os escombros do século XIX e os alicerces do XX, que ele começou a acontecer. O que faltava era apenas tempo para a consolidação e formalização de seu território. Ali estão as linhas de força do texto puro que os surrealistas tratarão de produzir através de dispositivos como a escrita automática, a alucinação induzida pelas drogas, o experimentação histérica e transgressiva do formal disponível. Por outro lado, igualmente veio a ser gestado um pop-surrealismo (a partir da década de 60) que, como você disse, acabou aproximando o processo de uma 'carnavalização' ponderada, de uma 'fantasmagoria' sígnica tribal, em que tudo se converteu em sopa Campbell. Sob esse aspecto, a transgressão foi, sim, pós-modernamente, implodida, massificada e, até mesmo, a figura bigoduda de Nietzsche (não suas reais convicções, corrosivas demais para tanto) terminou 'campbelizada' em nome de uma promessa, nunca imaginada antes, de analgesia, gozo e normalização...

 

2) Lyotard alardeou que a vanguarda estava morta. O que vemos – pelo menos no Brasil – é uma grande quantidade de poetas procurando a invenção. A busca pelo novo comporta a pós-modernidade ou, sendo um conceito moderno, caracteriza o Brasil como uma nação que não entrou ainda em tempos pós-modernos? É possível falar de invenção sem falar da modernidade? A vanguarda morreu mesmo? Existe algum país de ponta que esteja em algum estágio da pós-modernidade?

 

R. A vanguarda morreu como um mega-signo, como uma representação de vastas proporções, sugerida por determinados segmentos da sociedade, na ocasião que consideraram apropriada, como o mais legítimo e sincero relativamente às melhores expectativas de nossa época. Na condição de procedimento pensado, fomentado e posto em prática, primeiramente, no âmago daqueles segmentos (ideologicamente fechados com os burgueses e seu lema tríplice: riqueza, liberdade e poder) e, depois, lançado para as massas, a vanguarda foi um acontecimento tipicamente modernoso, herdeiro das aspirações iluministas por um mundo justo e razoável. Nesse sentido, nunca houve nada na história que se possa qualificar como tal, e nenhum momento celebratório semelhante em termos de abrangência e intensidade. Digo isso, porque certos autores insistem em ver, trans-historicamente, esse impulso para a renovação (ou dinamização) das formas e conceitos. Não concordo, absolutamente, com eles, pois uma das principais características da postura vanguardista tem sido sua excessividade, sua predisposição para o gratuito da experimentação, para o cômico da transgressão, para o ridículo do questionamento, para o agressivo da ruptura, e nunca houve, ao menos numa visão ampla, como acabei de dizer, outros ensejos, antes da virada do século XVIII para o XIX, que favorecessem, de forma tão generosa, tal floração.

Por outro lado, contrariamente aos que vivem anunciando a morte do mundo – não apenas simbólica, mas também concretamente – creio ser inviável o descarte dessa postura a não ser como imagem – e veja bem, as imagens, hoje em dia, têm pouco tem a ver com que consideramos serem os fatos, uma vez que os supera, e muito – assim como as palavras – no plano discursivo. Prefiro pensar que as atitudes vanguardistas vieram mais a reboque de um amadurecimento de hábitos do que como um agente provocador de inquietações interessantes e agradáveis do fazer-expressar. Não é só no Brasil que os inventivos vêm sendo valorizados, procurados, e a inventividade recultivada. O mundo inteiro padece de uma inanição crônica nesse sentido, causada, sobretudo, pelo excesso de informações e pela paralela incapacidade de processá-la. Fabrica-se, a rodo, informações, mas não se garante qualquer conhecimento. Faltam todo tipo de critérios, de intenções, de projetos, de estruturas, de referências... Faltam elementos norteadores, indicadores, mas também as próprias direções (orientação e ocidentação), bússolas, sextantes, mesmo corpos celestes, vestígios de luz.... Faltam tradições e a aptidão para defendê-las, adaptá-las, renová-las, acuá-las, subvertê-las... Se, tecnicamente, vivemos um período fabuloso em que as mensagens nunca estiveram tão rentes de nós, tão ao alcance de alguns (ainda que bem poucos) de nós, de um número surpreendente de nós, outros dispositivos valiosos continuam sendo desperdiçados como a educação formal (e, sobretudo, a informal). Caberia aos responsáveis diretos por essa educação – pais, professores, gestores e chefes de estados, assim como a toda a entourage e o staff que os alicerça – agenciar uma nova paideia, novos enlaces, alianças, bodas, cuja missão seria, entre outras, propiciar-nos, em primeira lugar, uma (re)potência de nós mesmos, e, depois (e junto), uma potência de articulação epistêmica que incluiria a filtragem, a escolha e o relacionamento sensato das mensagens flutuantes, de modo a aprendermos a usá-las não só em prol de nossa estética – da relação consigo –, mas também de uma ética – de uma relação com o outro –, em favor de uma utopia com outrem, de uma plena realização, a mais coletiva, comunitária possível.

Com efeito, a busca do novo independe dos rótulos e dos usos deles já feitos. Os brasileiros precisam – sob pena de nunca livrar-se das mazelas de uma condição permanente de nação colonizada – encontrar por si próprios, sem um necessário aconselhamento internacional, um caminho para o país, que seja o mais razoável para o seu acontecimento sociocultural e político-econômico. Só assim conseguirão começar a viabilizar o tão sonhado estágio de autonomia que ainda está longe de atingir, por ter sido amoldado ab ovo segundo padrões forasteiros: à lusitana, à inglesa, à francesa, à ianque, etc. Mais que isso: se ainda nem conseguimos ser 'modernos', esqueçamos, essa fixação alienígena – a mais recente de todas – de sermos 'pós-modernos'. Trata-se de outra festa, animada por muitas canções e fogos de artifício, e que, provavelmente, também dará em nada, a não ser em silêncio e opacidade. Só pode se dizer 'pós-moderno' quem efetivamente viveu, ao menos, uma sensação (aponte ela para a realidade ou não) de 'modernidade' (e há quem duvide disso: Latour, por exemplo) caso dos países ditos pós-industrializados. Este, infelizmente ou não, não é o nosso caso, o de um país crescentemente 'esquizofrenizado' numa multiplicidade de situações mal resolvidas e projetos por concluir. O Brasil é asiático, africano e euro-americano na mesma medida em que é pré-histórico, antigo, medieval, e moderno – até pós-moderno – em várias situações e posições, sob diversos ângulos e considerações... Cabe a nós – e, claro, isso não será nada fácil – o desafio de arrumar, de outro modo, a casa (éthos), mesmo que leve muito tempo (caberá a gerações que ainda nem nasceram, confirmar o possível acerto da arrumação) e aí sim, após nos situarmos relativamente a nós mesmos, acenarmos para o mundo: "Ei, estamos aqui!" Se, por outro lado, já não dispomos de tanto tempo, pelo outro, sabemos que sempre é possível esculpi-lo, que sempre será a hora de se refazer a hora...

 

3) Ou não existe mais criador como antes ou a obra de arte mudou o seu arsenal de conceitos postulantes a abarcar aspectos que venham compor uma teoria. Não se faz mais poema com linguagem conotativa e metáfora. Um quadro não tem mais cor ou não é mais figurativo ou ainda é um conluio de sistemas da teoria da comunicação que nada comunicam até às pessoas mais interessadas em arte. A música é um barulho? A arte vive como o mundo uma crise de valores. Sem ser pitonisa é possível alçar algum futuro deste caixão? O que está morto? O que vive em matéria de arte?

R. A meu ver, nada morre em termos de arte. Ou, ao menos, morre totalmente já que um pouco de morte, pensando bem, integra o movimento de vitalização daquilo que não cessa de 'morrer' visando 'reviver' outramente. Ocorre que não consigo vislumbrar uma separação possível entre arte e vida. Como afirma Deleuze em Os intercessores: "o fundamental é como se fazer aceitar pelo movimento de uma grande vaga, de uma coluna de ar ascendente, 'chegar entre' em vez de ser origem de um esforço". Sob esta ótica, só morreria o que teve uma origem, o que partiu de um ponto qualquer só para chegar a outro, num franco retorno às abstrações. Para mim a arte ora dormita, hiberna, se desativa para, em seguida, num movimento rude – uma tipo de pirueta inconseqüente com ares circences – reassumir suas linhas de fuga segundo a lógica das necessidades de um dado momento.

É nesse sentido que os artistas procuram, meio que inutilmente, garantir a continuidade de um itinerário de autodescoberta que ora afasta (desobriga) ora aproxima (compromete) a obra em relação a um concretum que, por seu lado, corrobora tais situações. Sabemos que hoje os artistas procuram dentro de si, de seus pensamentos e sensibilidades, uma espécie de senha magna para seu ofício, o que os mantém empenhados aos seus motivos, depois de séculos em que estiveram à mercê oscilatória dos jogos práticos dos extratos humanos que os amarrariam à sobredeterminação das demandas e utilizações. A história da arte aponta para a história da eficiência instrumental das obras: úteis para os xamãs na consecução da ilusão mágica da garantia de sobrevivência; para os sacerdotes no convencimento grupal de que a interlocução e a negociação eram sempre viáveis, se adequadamente intermediadas, pelos homens certos, com os deuses altíssimos; para os déspotas na docilização da maioria frente à autoridade transcendental de líderes apenas divinamente; para os burocratas religiosos em sua tentativa de territorialização geral do poder em nome da salvação e do aperfeiçoamento das almas pela via dos ritos e dos mitos; para os burgueses ascendentes, como dispositivos legitimadores de uma nova rostificação – libertária, sobretudo tolerante – do exercício disciplinar; enfim, para os especuladores do capital, ao se verem convertidas em moeda forte graças às artimanhas de narrativas altamente convincentes sobre a inofensividade de seu talento para a conversão dos corpos e das almas em belos corpos e boas almas.

O convívio com o caos continuará sendo uma constante no meio artístico já que a compensação pelas perdas históricas será, provavelmente, muito lenta e essa busca do tempo perdido, tão cedo, terá um fim. Até lá, a música se aproximará ainda mais dos ruídos, a pintura das rasuras, a escultura da amorfia, a literatura da gagueira (e, talvez, da afasia) e a poesia, especificamente, da indefinição verbivocovisual. É claro que nada estará, nesse ínterim, morto ou morrendo, mas apenas se preparando para um outro salto de reviver. Aqueles que ficarem atentos ao processo, e reunirem informação, paciência e perpicácia suficientes para assimilar suas gradações, poderão, à frente, descrever melhor do que nós, a configuração que, hoje, sob a forma provisória de 'vazio primordial', faz com que tenhamos a impressão de ver as artes apenas como rabiscos no horizonte. Estarão desobrigados (que sorte a deles!), portanto, de assumir, como alguns de nossos melhores críticos e especialistas – a não ser açodadamente – o papel, improvisado e desastrado, de adivinhos e profetas.

 

4) Uma antologia não é um saco de gatos onde cabe todo mundo que se julga bom. É muito mais – é uma obra de referência para futuras gerações e pode ajudar a mostrar o trabalho de poéticas interessantes que não têm espaço num mercado tão inapropriado ao que tem uma qualidade maior. Como é fazer parte da antologia Na virada do século – poesia de invenção no Brasil?

R. Toda antologia que se preze – e é sempre útil, nestas horas, relembrar a etimologia da palavra (do grego anthos + logos, 'ação de colher flores') – sinaliza bem mais do que uma 'elite', os 'melhores' poetas de uma geração, de uma época, de um lugar ou, enfim, de uma situação qualquer. Cada qual colhe, na campina que quiser, as flores que melhor lhe aprouverem, o que não significa que, se eu opto por colher as mais corriqueiras – como rosas, girassóis, margaridas – quem admira espécimes raros tenha que apreciar meu gosto. Apesar disso, o ato de colher flores é positivo na maioria das vezes. Trata-se de apreciar, não tanto o que é colhido, mas o ato de colher, a espontaneidade desse ato que poderia ser perfeitamente substituído por outros não tão apreciáveis, não tão admiráveis, não tão inofensivos...

Participar de Na virada do século foi, para mim, particularmente gratificante pelo fato de o processo ter ocorrido – pelo menos tive essa impressão – de um forma sincera, espontânea, a partir, sobretudo, da generosidade que todo ato de escolher-colher abriga quando quem escolhe-colhe o faz desinteressadamente. Não posso dizer isso, é claro, em nome dos demais participantes. Mas quero crer que tenha ocorrido o mesmo com eles. Não havia outro motivo para a minha inclusão na antologia que a simples apreciação de um trabalho, o reconhecimento, por menor que fosse, do valor de um texto. Há, no entanto, outros elementos a serem considerados. Na virada me pareceu, desde o início, um evento bastante democrático. Também achei positiva a iniciativa de incluir autores inéditos, pois, com ela, os organizadores-poetas Claudio Daniel e Frederico Barbosa cumpriram com o principal desígnio que uma publicação desse gênero deve ter: não referendar o consensual, não balizar o já-territorializado, mas mostrar a diverso, o periférico, apontar o qualitativo sem impor a tal gesto qualquer pretensão ou ranço de 'grande verdade'. Além disso, o livro ficou bonito, a edição foi feita com capricho pela Landy, tanto quanto outras que foram badaladas antes e que, ao menos aparentemente, funcionaram mais como um gleba de confraternização entre amigos, aliados e simpatizantes.

Hoje estamos, lamentavelmente, longe de poder dizer que o hiato entre a qualidade de nossa poesia e o empenho em sua divulgação tenha diminuído, principalmente no eixo Rio de Janeiro-São Paulo. Sinto no ar o mesmo cheiro de parcialidade de dez ou vinte anos atrás, algo que ninguém consegue sequer aliviar. Com efeito, as principais revistas – assim como os suplementos literários de nossos jornais mais populares – pouco se empenham em apontar intensidades e fulgores, em matéria de poesia. Para alguns eleitos – em sua maioria, homens da prosa – os romancistas, principalmente – qualquer brilhareco basta. As boas novas se espalham e multiplicam. As páginas se enchem de encômios (ocasionalmente, matizados por críticas), de referências, de lembretes, de avisos: "se você leu isso e gostou, então não pode deixar de ler aquilo", "conheçam a nova sensação", "nasceu um prodígio", etc. Tal fenômeno raramente acontece com poetas, embora também ocorra. A sensação é de que continuam optando por fornecer lastro para nomes (assinaturas, marcas, grifes literárias) em que as editoras decidem investir, inaugurar e chancelar – ao que parece, aqui e ali, atrapalhadamente assessoradas por críticos. Determinados autores são in status nascendi 'paradigmatizados' sem absolutamente justificarem (ou terem até chance para tanto), com uma obra, essa condição tão abstrata e vazia. É certo que há equívocos (alguns até acabam 'dando certo' por força da insistência) e uma ignorância por parte dos agentes da mídia – não tanto técnica, mas conceitual (por que não dizer, em alguns casos, moral?) – singra a consideração da boa escritura poética, que rotulada como não vendável, pouco auspiciosa comercialmente falando, passa ao largo como se nada representasse. Essa frouxidão se reflete na mesmice de nossas antologias e publicações, na falta de discussão e intercâmbio, assim como numa certa vaidade recorrente entre os poetas que, por vezes, beirando a vilania, incapacita um rigoroso agenciamento criativo por estes lados. É válido que se continue colhendo flores, pouco importa quais - e, no fim, acaba não importando mesmo – desde que, com isso, não se gere o hábito, doentio em sua essência, de simultaneamente pisoteá-las.

 

5) Walter Benjamin hierarquizava a arte? Segundo Paulo Sérgio Duarte, em um recente ensaio, Benjamin, ao colocar o cinema como a arte mais completa, acabou por hierarquizar a arte e colocar o cinema como uma arte superior em detrimento da poesia, da pintura e da música. É possível que ele tenha ficado deslumbrado com o cinema. Concorda com Paulo Sérgio Duarte? O cinema já chegou ao seu limite técnico e criativo? A modernidade abomina o conceito de limite. Quem faz limite não faz arte?

R. Benjamin foi contemporâneo do florescimento do cinema clássico – no rastro das trucagens de Meliès e Porter, e dos empreendimentos mercadizantes de Griffith e Chaplin – e teve oportunidade, quando ainda muito jovem (nasceu em 1892) de conhecê-lo também em seu acontecimento poético, mais do que científico-documental ou comercial – com as experiências exploratórias dos expressionistas alemães e dos soviéticos, franceses, escandinavos e, justamente, se interessou por sua, já àquela altura, surpreendente potência de tecnicidade. Costumo dizer para meus alunos, aludindo a um sociólogo que estimo bastante (Pierre Francastel), que as duas artes que melhor sintetizam os mitos e geometrias de nossa era, são, na ordem, o cinema e o projeto (design e arquitetura). As demais – entre elas, a pintura e a escultura, mas também a literatura, o teatro, a música, a dança – ainda não conseguiram superar, completamente, o estágio da experimentação. O que não significa que não possam, um dia – quem sabe, em breve – obter belos resultados de suas tentativas.

Em função disso, creio ser mesmo difícil não se deixar deslumbrar por uma arte que consegue unir tão bem, em sua condição amalgâmica, um bom quinhão dos recursos normalmente presentes nas demais modalidades. Em um filme podem ser perfeitamente (ou nem tanto, de acordo com a sensibilidade e a competência operacional do cineasta), uma multiplicidade interessantíssima de elementos não propriamente cinematográficos, mas que com ele se unirão, numa espécie de incorporação discursivo-formal, de têmpera imagética (no caso, pictórico-fotográfica, como em Jarman, Greenaway e Kar-Wai), mas também plástica (Tarkovsky e, ainda, Greenaway), dramático-literária, projetual, cênico-musical, etc. Não acho, porém, que se trate – nem em Benjamin – de uma hierarquização. Isso seria tolo e simplificador. Tratar-se-ia antes do reconhecimento de uma nova energia nas artes que pode ajudar a reconduzir-nos ao hábito do pensamento e, sobretudo, de sua consideração como um necessário complemento à experiência estético-sensorial. Creio que Benjamin – especialmente em A obra de arte na época de sua reprodução técnica – foi um dos que sacaram a tempo esse aspecto: o cinema é potencialmente uma transgressão e uma superação de limites que podem nos fazer reavaliar, em bases mais razoáveis e interessantes, este importante conceito. É sabendo lidar com os limites – de uma forma que intensifique o humano do humano – que poderemos nos encontrar ou, enfim, nos descobrir como seres plenos e evenemenciais.

 

6) Uma questão bastante batida, mas que, volta e meia, recebe uma nova roupagem e continua a ser discutida, é a questão da letra de música e poesia. É possível que um produto cultural possa ser analisado fora do seu habitat próprio? Ou seja, uma letra pode ser analisada sem a música? Quais as questões teóricas que fazem de uma letra de música uma letra de música e um poema um poema?

R. Citando Fellini que – como lembra Deleuze numa de suas entrevistas – se revela bergsoniano ao dizer que "somos, ao mesmo tempo (grifo meu), a infância, a velhice, a maturidade", tenho a impressão de que a letra de música e o poema co-existem, isto é, existem um no outro, no comprimento um do outro, numa co-insistência que acaba sendo uma pura co-extensividade. Assim também o roteiro em relação ao filme acabado. Mas o cinema também contém poesia e outras coisas, e não só, digamos, direta ou formalmente falando. Tudo se bifurca, antes se espalha, rizomaticamente, em direções indecisas, tudo acaba tendo a ver com todo o resto. Certos filmes se comportam como poemas, se adequadamente percebidos, decifrados, pensados.... Um poema pode parecer um filme se permitimos que suas imagens durem em nossa interioridade como um fluxo de forças sem precedência, de frouxidões protéicas, de imagens sempre outras. Pode-se dizer o mesmo de uma letra de música, da própria música, de um romance enquanto um traço, uma raspa, um fóssil do que lhe vem de fora... Assim um poema pode conter não só um, mas vários outros filmes. E um filme conter não só um, mas vários outros poemas. O problema é que, quando se cria uma língua no âmago de outra, tudo corre para o seu limite, não havendo a chance de uma identificação absoluta, de uma diferenciação fechada. Trata-se, sim, de um atrito zonal, de um virtualidade fronteiriça, em que tudo se imbrica, se descola, se entretece (cf. latim complectis) e no entre se acrescenta o que se fricciona ao que é friccionado e vice-versa, gerando uma segunda plica, e essa segunda uma terceira, e essa terceira uma quarta, numa reação em cadeia ou derivação de elementos devassáveis, afiadamente abertos.

Claro que, em via de regra, são raras as aventuras extremamente bem-sucedidos. Seja no cinema, seja na música, seja na literatura, seja na pintura... Todavia, voltando à pergunta, importa é que existem exemplos (não em profusão, mas existem) de casos felizes de 'musicalização' de um poema... Temos em nossa música popular, uma linhagem de compositores que souberam explorar e ainda exploram com habilidade essa região limítrofe entre a letra de música e o poema propriamente dito. Chico Buarque, Caetano Velloso, Gilberto Gil, Djavan, Fernando Brant, Aldir Blanc, etc., se não chegam a se assumir como poetas, deixam ou fazem com que o poético se propague de tal modo no que escrevem que parecem aspirar, pra valer – na expectativa de um apropriado acabamento melódico – a enteléquia da composição. Na esteira de Tarkovsky (O espelho, Stalker, Nostalgia) que fazia de sua câmera uma espécie de buril, cujos deslocamentos lavravam, repetidas vezes, lavravam a pedra do entrecho, lembro-me, só para citar um exemplo, dos primeiros dois álbuns do Secos & Molhados (lançados em 1973 e 1974, respectivamente) em que as letras (compostas por Paulinho Mendonça, João Apolinário, do próprio líder da banda, João Ricardo) funcionavam, poeticamente, em franco complemento à sonoridade das canções, sendo que algumas delas tomadas de empréstimo a nomes consagrados como Solano Trindade ('Mulher barriguda'), Vinícius de Moraes ('Rosa de Hiroshima'), Cassiano Ricardo ('Prece cósmica' e 'As andorinhas'), Manuel Bandeira ('Rondó do capitão'), Julio Cortazar ('Tercer mundo'), Fernando Pessoa ('Não: não digas nada') e Oswald de Andrade ('O hierofante').

 

7) A sua poesia é de um minimalismo peculiar. Não é da inapetência minimal – um péssimo hábito de certas poéticas – que discorro, pois o considero um dos maiores poetas do Brasil hoje. Falo de uma maneira negra e própria de enxergar o mundo – de uma forma ao mesmo tempo mínima e exacerbada. Falo de como, com um mínimo de palavras, é possível atingir um impacto total? Falo de uma poesia, como nos diz Cláudio Daniel, de alto impacto. Quais aspectos teóricos mais fazem o poeta 'quebrar a cabeça' para conseguir uma poesia como a que você tem?

 

R. Você foi bastante feliz ao falar de "uma forma, ao mesmo tempo, mínima e exacerbada". Como já dissera em outra entrevista, é o que, sinceramente, venho perseguindo como poeta. E não é nada fácil lidar com esse par de incompossíveis: o mínimo e o exacerbado. Dizer muito – o máximo que a palavra permite naquele momento tão tênue e alongado quanto é o do versejamento, do transe poético, do esgarçamento sensório-conceitual – sobre o mundo que me cerca, tendo a condição que interferir nessa relação com a treva, atirando um pouco de luz no processo através do apuro da forma, da geometrização do caos é o que mais aspiro hoje, nesse estágio de vida em que me encontro. O problema é que sentimos o mundo cada vez mais perto e remoto – numa condição vertiginosa de abismo e de deserto (recorro aqui a Marcio Tavares d'Amaral que, provocativamente, fala, em um de seus ensaios, de um abismo da indiferenciação e de um deserto da indiferença como marcas, por excelência, da cultura comunicacional contemporânea) e se, em determinados momentos, com ele me relaciono (quase que eroticamente), em outros, tenho a certeza que só há uma possibilidade de reencontrá-lo: ao guerrear com ele, ao procurar destruí-lo, sem estardalhaço, visando reinvesti-lo, topologicamente, mediante uma repoiese signica do tempo-espaço. Avançar rumo ao mundo, procurando desabismá-lo, desdesertificá-lo e, com isso, dizer todo o possível sobre ele, de modo a reaproximá-lo, torná-lo, novamente, íntimo de si, é uma das tarefas graves do poeta-pensador e do pensador-poeta. Negá-lo em sua insistência, rejeitá-lo em seus apelos fáceis, é uma outra tarefa, mais árdua ainda, mas que se não for perseguida, implicará no logro, na débacle, na mentira final da poesia.

 

8) Há uma geração inteira que cultua muito a poesia de Drummond, mas parece que é a hora de João Cabral de Melo Neto. Pelo que o poeta colocou de tensão estrutural no poema, por ter exacerbado uma discussão entre a poesia derramada e a poesia enxuta, é a hora de revitalizar a poesia de João Cabral? Poderia me falar – como poeta forte que é – de algumas de suas angústias literárias à moda de Harold Bloom?

 

R. Num estágio cultural caracterizado pela perda tanto do princípio de ação quanto da própria força da realidade, por uma habilidade inédita em produzir ilusões coletivas (que, por vezes, me lembra, sinistramente, a ficção do Orwell de 1984, mas também dos Wachowski em The Matrix), pela imersão tecnológica dos homens num ambiente virtual em que as simulações já nem precisam disfarçar a ausência inexorável das coisas, enfim, no momento da chamada ressaca pós-moderna, minha principal angústia não poderia deixar de ser a de conceber uma poesia que, longe de refletir, antes acusasse isso tudo – que, de algum modo, interviesse nisso tudo.

Gostaria muito que minha possível obra pudesse funcionar como uma alternativa – qualquer uma, uma qualquer entre tantas outras que virão – cuja principal ambição seria provocar uma agitação, por menor que fosse, na literatura de meu tempo, no sentido de favorecer, através dela, uma mudança na sensibilidade, sempre ao seu modo, relativamente a esse preocupante processo de afastamento entre homem e mundo. Se simulacros ocuparam de vez o lugar de um real que já não é, sendo muito complicado, para a maioria de nós, perceber isso, ou seja, distinguir entre o que acontece 'naturalmente' e o que não passa de uma acintosa encenação de acontecer, não tenho dúvida, e repito, que só pode haver, hoje, uma única angústia que, de fato, compense seu embaraço: a de ser.

Creio que caberá aos poetas um importante papel na reversão desse quadro. Caberá a eles reensinar o valor da lentidão, do apuro e da metáfora – seja contra o demônio malvado da velocidade acelerada, seja contra o desarmamento geral de todos os simbolismos, seja contra o achatamento discursivo das mentalidades, pois é, no nível da linguagem, que as mais decisivas batalhas estão sendo vencidas ou perdidas atualmente. Poetas do náipe de João Cabral tendem a ser revisitados justamente em função de – afora a indiscutível pujança estética das rupturas que propõem – atentarem, numa justa medida, para esse problema crucial, o da linguagem, ou melhor, do desarmamento das linguagens, da disjunção que hoje chega a ser abissal entre o que lhe é permitido e o que, em nome dela, se permite. Por outro lado, penso numa poesia também marcada pela obsessão do qualia, que gera, sem medo, conceitos quase táteis em sua aproximação com o concretum.

Mas como não valorizar também uma poética, como a drummondiana (não devemos, igualmente, esquecer de Bandeira), que se empenha na expressão do profundo, da temporalidade e da contingência, num acirramento figural do imaginário e da memória num mundo em que sempre nos sentimos mais achatados e inespessos? Ouso afirmar que se trata de duas angústias que se coadunam. A angústia do dentro pela falta do fora e a angústia do fora pelo esquecimento do dentro. Afora os modismos de sempre – com seus motivos a priori duvidosos – o homem contemporâneo, uma vez cônscio das dimensões de sua crise, decerto se potencializará com o que os bons poetas puderem lhe oferecer. Urge reconstruir – em novas bases, é claro – a cena futura do humano, devendo a tão esperada integração do dentro e do fora se dar, num primeiro momento, mediante uma reeducação dos sentidos e, depois, quem sabe, por um modo surpreendentemente criativo de resolver os dualismos. Só assim, penso, é que estes poderão ser definitivamente superados.

Niterói, 14 de setembro de 2002.


Sincronía Otoño 2002

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