Sincronía Otoño 2006


A reinvenção dos símbolos: um olhar crítico sobre as relações entre o Oriente e o  Ocidente na era do pós-colonialismo

Shirley de Souza Gomes Carreira

UNIGRANRIO


 

                                      Nomear, como se sabe, é fazer ver, é criar, levar à existência. Pierre Bourdieu

                                                                                                              

 

Desde os primórdios de sua história, o homem tem construído a sua trajetória a partir de um universo simbólico, por ele criado, com o qual pretende estruturar e explicar a sua relação com o meio ambiente e com os outros indivíduos de sua espécie.

Dessa necessidade surgiram os mitos de origem, bem como a explicação simbólica para relações binárias de poder, que reproduziam no nível do imaginário as situações análogas da vida humana.

O que temos chamado há um longo tempo de História nada mais é do que o registro formal de séculos de dominação segundo a ótica do dominador; séculos de perpetuação de um modelo binário e assimétrico de exercício do poder.

O século XX veio a ser o palco onde se desenrolou uma série de ações humanas a qual se convencionou chamar de “descolonização”.  Um processo doloroso — após um não menos sofrido período de lutas armadas — de separação entre as ex-colônias e as potências imperialistas. Doloroso em seu propósito de configuração de novos estados-nação, na medida em que o conflito gerado pela luta contra o colonizador cedeu, na maioria das vezes, seu espaço à luta interna entre facções candidatas ao governo.

Em meio às crises geradas pela tentativa de unificação desses novos estados, o meio acadêmico detém o seu olhar sobre um campo de estudos que vem crescendo em importância desde a década de sessenta, do século XX: os estudos pós-coloniais, cuja trajetória entrelaça-se ao pós-modernismo e aos Estudos Culturais. Os assim chamados “estudos pós-coloniais” focalizam, portanto, as manifestações culturais, entre elas a expressão literária, das nações que conquistaram sua independência após um longo período de dominação política e cultural.

Admitir um estado pós-colonial é, conseqüentemente, pressupor que o colonialismo teve um fim. Se examinarmos detalhadamente a história recente dos países que sofreram o processo de colonização, com certeza chegaremos à conclusão de que, em muitos deles, a colonização ainda não terminou. Pelo contrário, ela continua e não só nesses países, mas persiste também na proposta de globalização, cuja forma de domínio se esconde sob a idéia de uma aparente igualdade. Escritores e críticos de projeção internacional têm sumariamente rejeitado a adoção do prefixo “pós”, por interpretarem-no como uma perpetuação de uma visão segregacionista, que cria, com o rótulo, uma espécie de gueto cultural, onde ficaria alocada a produção crítica e literária oriunda dessas culturas.

Ainda que não queiramos admitir, vivemos e sobrevivemos sob o domínio de um imperialismo detectável na orientação política internacional e na própria formação do cânone literário.

Este ensaio propõe pensar as articulações entre cultura, identidade e sociedade, a partir de uma ótica que privilegia as relações de poder, tomando por base os conceitos de ideologia e discurso e visando à análise de como a ideologia participa dos processos de produção de sentido, estabilizando e naturalizando relações assimétricas, uma vez que tanto as culturas como as identidades constituem-se no e pelo discurso.

Para tanto, partiremos de uma concepção “neutra” de Ideologia, capaz de representar diferentes grupos e classes, e não apenas a classe dominante; e também tomaremos a ideologia não como um conjunto de idéias, autônomas ou em via de assim se tornarem, mas como algo que está presente na realidade, que existe materialmente nas práticas sociais e nos signos na forma de discurso.

Segundo Stuart Hall, as ideologias são as estruturas mentais - as linguagens, os conceitos, as categorias, as imagens do pensamento e os sistemas de representação - que diferentes classes e grupos sociais empregam para dar sentido, definir, decifrar e tornar inteligível o modo como a sociedade opera (HALL, 1996, p.26). Se partirmos do princípio de que a realidade existente fora da linguagem é por ela mediada, perceberemos que a ideologia é um dos discursos possíveis sobre a realidade.

Ao empregarmos a linguagem, o fazemos em um dado contexto histórico e a partir de um lugar. Enquanto sujeitos discursivos, somos guiados pelo inconsciente e pela ideologia. As palavras que conhecemos e usamos para organizar o mundo chegam até nós já carregadas de sentido. Aquilo que entendemos como evidente e óbvio, ou seja, o sentido das palavras, na verdade é parte de um processo do qual não dominamos todos os mecanismos. Esse desconhecimento relativo é o que possibilita a naturalização da relação do simbólico com o histórico.

Se as formas simbólicas estão sempre inseridas em processos e contextos sócio-históricos específicos, dentro dos quais e por meio dos quais elas são produzidas, transmitidas e percebidas, toda forma simbólica é, por si só, um fenômeno cultural e, se há construção de sentido, necessária para que possamos falar em formas simbólicas, a ideologia está presente neste processo.

Segundo Bourdieu, "o mundo social apresenta-se, objetivamente, como um espaço simbólico que é organizado segundo a lógica da diferença do desvio diferencial". (BOURDIEU, 1990). A cultura é a esfera na qual se naturalizam e se representam as desigualdades sociais. Mas, ao mesmo tempo, a cultura é também o meio através do qual os diferentes grupos subordinados vivem e opõem resistência a essa subordinação. Assim, ela constitui o terreno onde se desenvolve a luta pela hegemonia.

As desigualdades e assimetrias existentes dentro de uma cultura, ou entre culturas, levam a conflitos que estão diretamente relacionados às identidades culturais, ou seja, “aqueles aspectos de nossas identidades que surgem de nosso “pertencimento” a culturas étnicas, lingüísticas, religiosas e, acima de tudo, nacionais.'' (HALL, 1997a, p.8)

A imbricação do discurso ideológico, predominantemente explicativo, com o discurso da identidade cultural, que é classificatório, é essencial à formação e à representação das políticas identitárias. Ao articular os fenômenos culturais, classificando-os como pertencentes ou não a uma determinada identidade e posicionando os indivíduos e grupos sociais nos contextos sociais pelo processo da identificação, as identidades culturais  operam em um princípio de inclusão e exclusão, ao mesmo tempo que estabelece relações de poder entre o Eu e o Outro.

Na afirmação da diferença são estabelecidos critérios de valor e o âmbito da identidade cultural, por sua vez, é estabelecido pela ideologia. Assim, cada um dispõe da identidade que convém ao papel que deve preencher na conjuntura da sociedade de classe, de acordo com a ideologia desta sociedade, que determina o que ele pode ser e que posição ele deve assumir. Sociologicamente, a identidade preenche o espaço entre o mundo pessoal e o mundo público, costurando, como afirma Hall, o sujeito à estrutura. No entanto, as identidades não são fixas, essenciais ou permanentes, mas são formadas e transformadas “continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (p.13). Uma visão que conceba a identidade não como essência, mas como posicionamento, pressupõe aceitar que também qualquer descrição de uma identidade é parcial, refletindo um dado posicionamento no tecido social. Esses "lugares" definem esferas de legitimidade que impõem, que colocam, com autoridade indiscutível, atos de linguagem, discursos e práticas específicas, dentro de um domínio específico de competência.

Os modos de representação da realidade são múltiplos, condicionados em grande parte pela mídia, e, nessa conjuntura, interessa-nos, em particular, o exame dessa representação a partir da literatura, bem como o seu papel nos processos de construção dos valores simbólicos em circulação na sociedade. Importa-nos, para tanto, pensar a identidade como a posição do sujeito num determinado ato de fala, que se refere a uma determinada ideologia e a um determinado contexto estruturado, não a uma identidade fixa ou essencial do sujeito.

O exame crítico, por exemplo, do modo pelo qual as relações entre Ocidente e Oriente são representadas na literatura passa, conseqüentemente, por uma reflexão sobre o colonialismo e o pós-colonialismo. Segundo ASHCROFT (1991, p.186), o pós-colonialismo lida com os efeitos da colonização nas culturas e nas sociedades, muito embora no final dos anos setenta o termo tenha começado a ser utilizado para discutir os vários efeitos culturais da colonização. Dentre os muitos conceitos surgidos a partir de uma ótica de descentramento, ou ex-ótica, própria do pós-modernismo, está o conceito de “alteridade”, variante para “otherness”, no sentido de ser o outro, ou diferente. O termo foi adotado para registrar uma mudança na percepção do Ocidente na relação entre a consciência e o mundo, desconstruindo, assim, a visão do que está fora do self como um “outro reduzido”, visto apenas como uma questão epistemológica, conferindo-lhe, em sua condição de “outro”, o estatuto de elemento inseparável da constituição do eu.

Assim, os Estudos Pós-coloniais privilegiam a expressão das vozes oriundas das ex-colônias, para transformarem-se, quase que em seguida, em um umbrella term, no qual estão inseridas todas as literaturas produzidas por grupos minoritários, uma vez que seus representantes têm sido, de uma forma ou de outra, subjugados por algum tipo de poder com base na discriminação, seja esta de gênero, raça ou social.

Para Stuart Hall, o Pós-colonialismo promove uma releitura da “colonização” como parte de um processo global essencialmente transnacional e transcultural, produzindo uma reescrita descentrada, diaspórica ou “global” das grandes narrativas imperiais do passado, centradas na nação.

Muito do que se reconhece como “literatura pós-colonial”— com raríssimas exceções, como é o caso de Arundhati Roy— pode ser interpretado como a literatura produzida em língua inglesa por imigrantes, ou exilados, oriundos de ex-colônias. Ao descobrir que, para preservar a sua estabilidade e perpetuar a sua expansão, o ocidente inventou representações de si e do outro, a fim de exercer a sua capacidade e vontade de domínio, os indivíduos oriundos de culturas “colonizadas” buscaram a única saída que julgavam plausível para tornar audível a própria voz: migrar, adquirir a cultura do colonizador para, então, enunciar, a partir de um novo locus, o seu discurso.

A situação específica do imigrante, assim como a do exilado, concorre para a formação de figurações e configurações múltiplas de identidade causadas pela busca do sentido de “pertencimento” e pela tentativa de recuperar o que Marc Augé denomina “lugar antropológico”. Segundo Augé (1994, p. 31), a investigação antropológica tem por objeto analisar o modo pelo qual os indivíduos interpretam a categoria do outro, conferindo-lhe um lugar, uma raça ou uma etnia. O sentido de “pertencimento” vai além de um limite puramente físico, portanto, o “lugar antropológico” é a construção concreta e simbólica do espaço que o indivíduo reivindica como seu; que sintetiza todo o seu percurso cultural; que é, ao mesmo tempo, identitário, relacional e histórico.

Tomaremos como exemplo um dos expoentes da assim chamada literatura pós-colonial em língua inglesa, o romancista Salman Rushdie, buscando situá-lo nesse panorama e analisar a forma pela qual a sua prática discursiva colabora para a conformação identitária de um sujeito migrante, cosmopolita e crítico das ideologias que advogam posições subjetivas fixas, calcadas em modelos tradicionais de configuração identitária.

Estudos sobre a migração têm demonstrado que um migrante vive em um processo de adaptação contínua, enfrentando o desafio de lidar com culturas diferentes e, conseqüentemente, de aceitar a co-existência de múltiplas identidades. Em Imaginary Homelands, Salman Rushdie (1991, p. 277-8) expôs a sua visão particular da migração, que tomo por empréstimo, a fim de que sirva como ponto de partida para a análise que proponho:

“Um migrante, na acepção completa da palavra, sofre, tradicionalmente, uma tripla ruptura: ele perde o seu “lugar”, adota uma língua estrangeira, e se vê cercado de pessoas cujo comportamento e códigos sociais são muito diversos dos seus, e, às vezes, até mesmo ofensivos”.

 As raízes, o idioma e as normas sociais constituem três importantes aspectos da definição da identidade cultural. Ao negá-los, o migrante vê-se obrigado a encontrar novos modos para descrever-se e definir-se enquanto indivíduo. Sendo ele mesmo um escritor migrante, Rushdie faz da literatura a arena do discurso, onde temas como migração, hibridismo, nação e exílio são trazidos à discussão.

A imagem do sujeito em mutação surge no primeiro romance de Rushdie, Grimus (2003), que constitui uma alegoria do processo de transculturação. Para tanto, ele cria a personagem Flapping Eagle (Águia Esvoaçante), um nativo americano, membro da tribo fictícia dos Axona Ameríndios. Por ter ficado órfão no momento de seu nascimento, a tribo dá-lhe, a princípio, o nome de Born-from-dead , (Nascido-da-morta), situando-o a meio termo entre o mundo dos mortos e o dos vivos, o que, em seu meio, constitui mau agouro. Além disso, ele tem pele clara, contrastando com a cor escura dos Axona, para quem o seu nascimento atípico e a sua brancura representam uma falta de identidade racial e étnica. Após a morte do pai, Flapping Eagle e sua irmã mais velha, Bird-Dog, passam a ser tratados como párias pelos membros da tribo.

Dentre as características de indefinição identitária que configuram a personagem, há o hermafroditismo, que gera por parte da tribo uma represália que se manifesta, inicialmente, na troca do nome da personagem para Joe-Sue, e, posteriormente, na sua expulsão da tribo:

Há algo de que Bird-Dog nunca me acusou, o que descobri apenas depois de sua partida, e que foi a principal razão, a verdadeira causa da nossa separação da tribo; não foi o fato de sermos órfãos, nem a sua masculinidade, nem o fato de ela ter adotado um nome de bravo, nem o seu comportamento; a causa não foi ela. Fui eu, Joe-Sue. Por três razões: primeira, o meu sexo confuso; segunda, as circunstâncias do meu nascimento, e terceira, a minha pigmentação. Para enunciá-las na ordem. Ser um hermafrodita entre os Axona é ser um remédio ruim. Um monstro. Passar desse estado ao de um homem “normal” é algo como magia negra. Eles não gostavam disso. Ser o que eu era, nascido da morta, era um presságio perigoso; se eu havia causado a morte no momento do meu nascimento, ela estaria sobre os meus ombros como um abutre onde quer que eu fosse. Quanto à minha cor: os Axona são uma raça de pele escura e de baixa estatura. Enquanto eu crescia, ficou claro que eu seria, inexplicavelmente, claro e alto. Essa aberração genética posterior— a brancura— fez com que eles me temessem e evitassem qualquer contato comigo. (Grimus, p.17-18)

A inadequação da personagem ao seu lugar antropológico é alvo do exame do autor, pois exemplifica simbolicamente as relações do homem com o meio e o aspecto restritivo da tradição. Segundo Kauffman (2004, p.17), a comunidade subordinada à tradição é auto-reguladora, pois define e constrói simultaneamente os indivíduos que dela fazem parte. À medida que um indivíduo, dada a sua difference, é forçado, de algum modo, a romper com essa estrutura básica que sustenta e unifica identidades, ele passa a perceber que, ao contrário do que convencionalmente se afirma, a imagem de si mesmo é a matéria prima da construção identitária.

Stuart Hall (1998, p.63) afirma que a raça é uma categoria discursiva, que se apóia frouxamente em características biológicas como marcas simbólicas a fim de diferenciar socialmente um grupo do outro. A situação de “exílio” imposta à personagem do romance é uma crítica alegórica ao racismo e à discriminação racial. Os excessos cometidos pelos Axona em sua preocupação com a autopreservação, a sua obsessão por saúde e limpeza, simbolizam o extremismo de certos grupamentos raciais contemporâneos: “Tudo o que não é Axona é impuro” (Grimus, p.25). 

A obra de Rushdie como um todo tem sido baseada nas idéias de “multiplicidade, pluralismo, hibridismo, idéias para as quais as ideologias dos líderes das comunidades são diametralmente opostas” (RUSHDIE, 1991, p. 32), uma vez que estes ainda se prendem à representação de identidades nacionais unificadas, ignorando precisamente o conceito de difference. A tradição, assim como a religião, portanto, tem sido usada como instrumento de poder, criando padrões de comportamento que colaboram para uma atitude subserviente que é do interesse do Estado. Especificamente, nas sociedades orientais, devido à estreita relação entre a religião e o comportamento social, a idéia de pureza racial tem sido cuidadosamente mantida, como uma forma de resistência à concepção do multiculturalismo.

No romance em questão, o protagonista é forçado a perceber-se como um todo complexo, formado a partir de múltiplas imagens de si. Discursivamente, essa percepção se concretiza na utilização de pronomes, que ora apontam para o eu, ora apontam para um outro: “[As garrafas] Elas eram dele, minhas”. (Grimus, p. 21)

À medida que se vê rejeitado pela própria tribo, Flapping Eagle inicia uma longa jornada pelo mundo exterior. A experiência do exílio promove um deslocamento que exige do protagonista o desenvolvimento de uma estratégia de interação com o mundo: “Eu era um tipo de homem adaptável, mais para camaleão do que para águia, mais uma reação do que uma ação” (Grimus, p. 27). O que a personagem vê como capacidade de adaptação constitui, na realidade, uma característica inerente ao homem: a mutabilidade identitária. O processo de mudança é constante e ocorre na medida em que o homem é forçado ao deslocamento.

 Segundo Stuart Hall (2003, p.74), o hibridismo não é uma referência à composição racial mista de uma população, mas um outro termo para a lógica cultural da “tradução”, isto é, um processo através do qual faz-se uma revisão dos próprios sistemas referência, normas e valores, pelo distanciamento de suas regras habituais. A ambivalência e o antagonismo acompanham cada ato de tradução cultural. Ao nos deslocarmos, os nossos vínculos com o lugar antropológico são automaticamente revisados, diluídos e novos elementos são incorporados à nossa identidade, que passa a ser outra, híbrida e transcultural. A negociação com a nova cultura na qual nos inserimos provoca o surgimento de uma nova identidade que se opõe tanto à assimilação quanto à manutenção integral da identidade vinculada ao lugar antropológico. A esse processo o antropólogo Fernando Ortiz denominou “transculturação”.

Rushdie mostra-se articulado quanto ao papel da mídia na manutenção de políticas racistas principalmente no que diz respeito ao discurso sobre os imigrantes. Segundo Teun Van Dijk (1993), a manipulação social, definida em termos de domínio e poder, é amplamente reproduzida nas práticas cotidianas, especialmente nas práticas discursivas. Segundo o autor, na sociedade da informação, as elites simbólicas têm construído um discurso segregacionista ao associar o crescimento da imigração à delinqüência e ao desemprego.

Em Shame, outro dos romances de Rushdie, o narrador faz uma longa digressão na tentativa de explicar a composição de suas personagens, tomando por referência alguns episódios que estão de certo modo vinculados aos conceitos de “vergonha” e “moral” que sustentam a narrativa. Um desses episódios diz respeito ao espancamento de uma jovem asiática por jovens brancos em um trem do metrô londrino. Após ter sido covardemente espancada pelos rapazes, a jovem optou por não denunciar a agressão, imbuída do sentimento de vergonha que a exposição pública do evento traria a si e à sua família. Rushdie relaciona esse episódio a outro: cenas de revolta de camadas desfavorecidas da população invadindo e queimando lojas e sendo reprimidas pela polícia local. Sem assumir a defesa ou acusar nenhum grupo em particular, Rushdie reflete sobre os acontecimentos como conseqüência esperada dos abusos cometidos contra as minorias sociais. A frase que enuncia é contundente: “Humilhe pessoas por um longo tempo e verás a selvageria eclodir de dentro delas.”(Shame, p.119)

 A importância do discurso midiático na configuração da imagem pública do imigrante torna-se clara nessa digressão, bem como a manipulação da opinião pública pelo discurso político. Ao desvelar ante os olhos do leitor a postura xenofóbica adotada pelo Ocidente, o autor promove uma reflexão sobre o que ele mesmo denomina Englishness, em seu livro de ensaios Imaginary Homelands. Segundo Rushdie, na tentativa de se construir o traço da “inglesidade’, constitutivo da identidade cultural britânica, o binarismo eu/outro opera como um divisor de águas social, de tal modo que os imigrantes asiáticos são todos reunidos sob o rótulo de “indianos”, que passa a ser associado à alteridade.Assim, a diversidade cultural dos imigrantes, bem como a sua participação no tecido social de um país que contém um número expressivo de imigrantes de diversas nacionalidades, é ignorada.

A manutenção do olhar eurocêntrico indica que a concepção do pós-colonialismo está mais fundamentada em um fato histórico, a independência política, que em questões de identidade cultural.

Para Rushdie, é impossível ignorar o fato de que as nações modernas são compostas de identidades híbridas e transculturais, uma vez que o imigrante transforma e é transformado pela cultura do país de adoção. A transculturação está, portanto, no âmago do questionamento expresso pelo autor em sua obra como um todo. Ao contrário do que se espera de um autor “pós-colonial”, ele não se coloca em posição de luta pela afirmação de sua identidade nacional, assumindo publicamente uma identidade híbrida, que reflete o processo de transculturação que sofreu por ter vivido sucessivamente na Índia, Paquistão, Inglaterra e Estados Unidos. Sua obra como um todo discute a tradução cultural e a sua concepção pessoal de que todo escritor migrante, como ele, que pertence a dois mundos a um só tempo, no caso, Oriente e Ocidente, são homens traduzidos (RUSHDIE,1991, p.16).

Em Fúria, Rushdie narra a saga de um ex-professor de História das Idéias que exemplifica bem o homem que é o produto das novas diásporas criadas pelas migrações pós-coloniais.

 Após encerrar a sua carreira acadêmica em Cambridge, Malik Solanka volta a se dedicar a um antigo hobby: a confecção de bonecos de madeira. Uma de suas criações, a boneca Little Brain, acaba por virar celebridade televisiva, em um programa em que viaja no tempo e entrevista os grandes filósofos da história.

Ao ver que o poder da mídia suplantara as suas convicções intelectuais e éticas, Solanka abandona a família e foge para Nova York, tentando dominar em si aquilo que considera o mal do mundo contemporâneo: a fúria.

 

A ambição o comprometia e as concessões selavam seus lábios. Preso por contrato a não atacar a galinha dos ovos de ouro, teve de estrangular suas idéias e, para manter essa posição, encheu-se da amarga bile de seus muitos descontentamentos. A cada nova iniciativa da mídia liderada pelo personagem que um dia delineara com tamanha vivacidade cuidado, crescia sua fúria impotente.(Fúria, p.121)

 

Ao situar seu romance em Nova York, Rushdie pisa o campo minado que relaciona referências locais e universais, regionais e cosmopolitas, nacionais e internacionais. A via de acesso à mobilidade e visibilidade mundial, sem perder a fidelidade aos dados e referências locais, é o grande desafio do homem traduzido.

Criar uma personagem que busca o auto-exílio por causa da massificação de suas idéias e situá-la em um romance pródigo em citações e referências aos ícones da sociedade de consumo pode parecer uma incongruência. O paradoxo aparente pode confundir o leitor semântico (ECO, 2003, p.208), porém dificilmente ludibriará o leitor semiótico, ou estético. A ironia intertextual é detectável na oposição entre os recursos discursivos e a narração.

Édouard Glissant (1996, p.121) afirma que só há um modo de combater o “universalismo desenraizado”, ou seja, o universal imposto pelo ocidente: (d)escrever o seu mundo específico, pois só há universalidade quando, do recinto particular, a voz profunda grita.

Homem voluntariamente exilado, Solanka experimenta a trajetória do migrante; trajetória que se assemelha, guardadas as devidas proporções, a do próprio autor, que tendo partido de Bombaim para a Inglaterra, onde estudou e esteve sob proteção durante a fatwa determinada pelo Aiatolá Khomeini, recentemente elegeu os EUA como o seu lugar de refúgio.

A literatura que nasce da migração do escritor, conforme afirma Júlio Monteiro Martins (GNISCI, 2001,114), é um tipo de sincretismo literário – temático e estilístico – uma conseqüência natural do condicionamento e da mudança no curso do estilo de vida dos escritores migrantes: o exílio, o cosmopolitismo, o multilingüismo, a migração e a fuga.

Assim sendo, Solanka funciona até certo ponto como porta-voz do autor no processo de difusão de suas idéias e crenças, ainda que veladamente, como sugere Armando Gnisci, em “Lettere Migranti” (2003,173)[i]: O escritor migrante, ainda que não escreva sobre a migração, a transforma em poética, como tema comum e como pedra de tropeço e confronto no mundo em que vivemos (vide Rushdie, Kureishi e Walcott).

Se por um lado, a voz de Rushdie não está a serviço da identidade cultural indiana, também não se furta ao discurso crítico em relação à hegemonia norte-americana, que se revela nas reflexões de Solanka sobre as mutações de caráter sofrida pelo amigo, Rhinehart:

 

Esse mesmo Jack podia agora se colocar lado a lado com os grandes chefes do mundo, e, Solanka se deslumbrou, mais uma vez, com a capacidade humana de automorfose, a transformação do eu, que os americanos reivindicavam como sua característica especial e definidora. Não era. Os americanos estavam sempre rotulando coisas com o logotipo América: Sonho Americano, Búfalo Americano, Grafite Americano, Maluco Americano, Canção Americana. Mas todo mundo tinha coisas assim também, e no resto do mundo o acréscimo de um prefixo nacionalista parecia não acrescentar muito sentido. Maluco Inglês, Grafite Indiano, Búfalo australiano, Sonho Egípcio, Canção Chilena. A necessidade americana de tornar as coisas americanas para se apossar delas, pensou Solanka, era sinal de uma estranha insegurança. E também, claro, mais prosaicamente de capitalismo. (Fúria, p.70)

 

Solanka é capaz de detectar na história de Rhinehart o escuro leito onde crescem as sementes da fúria, o segredo sombrio que o outro acalentava, seu desejo de ser aceito no “mundo dos homens brancos”, segredo que não confessava a ninguém e, talvez, nem a si mesmo. No entanto, estava sempre buscando meios para ignorar a origem da raiva que trazia dentro de si.

A problemática da imigração está, portanto, no cerne do discurso de Rushdie e aborda uma outra questão, igualmente importante, que é a necessidade de uma opção quanto às formas de aculturação. Deverá o imigrante passar por um processo de adaptação, aniquilando ao máximo os vestígios de sua identidade cultural, a fim de obter a aceitação em um novo grupamento social? Deverá, em um sentido diametralmente oposto, adotar uma postura de confinamento, de manutenção das raízes, em prejuízo da interação com o meio, formando “guetos” culturais? Finalmente, deverá esse imigrante assumir a impossibilidade de manter incólume a sua identidade cultural em um novo país e em uma nova sociedade?

Assim, Rushdie constrói uma personagem que, finalmente, se vê dentro do cenário de articulações entre identidade, economia e política que compõem o mundo contemporâneo. O acordar para a realidade faz com que Solanka perceba a incoerência da fuga, a falha ao atribuir à cidade de Nova Iorque a capacidade de resgatá-lo das profundezas do seu medo.

 

Sim, ela o tinha seduzido, a América, sim, seu brilho o excitara, e sua vasta potência também, e estava comprometido nessa sedução. Aquilo a que se opunha nela, tinha de atacar também em si mesmo. Ela o fazia desejar aquilo que prometia e eternamente retinha. Todo mundo era americanizado agora: indianos, iranianos, uzbeques, japoneses, liliputianos, todos. A América era  o parque de diversões do mundo, seu livro de regras e árbitro e bola. Até o antiamericanismo era americanismo disfarçado, contanto que aceitasse, como aceitava, que a América era o único jogo a ser jogado e a matéria da América o único negócio.(Fúria, 107)

 

A ambivalência de sentimentos é típica dos homens traduzidos. Seres obrigados a “aprender a habitar, no mínimo, duas identidades, a falar duas linguagens culturais, a traduzir e negociar entre elas” (Hall: 98,89). A tentativa de unificar essas identidades passa pelo sentimento de culpa em relação à casa/pátria abandonada e à atração pela  “casa do depois”, a pátria de adoção (GNISCI, 2003,10).

No âmago dessa ambivalência está a consciência de que a diversidade cultural é uma questão política fundamental para o futuro das sociedades de um pólo ao outro. O papel da literatura como disseminadora dessa diversidade continua a ser determinante, pois a estratégia de dominação ainda continua sendo a tentativa de uniformização e estandardização da cultura, de imposição da lógica ocidental singular à pluralidade cultural dos povos que não fazem parte do “centro”. E a Nova York que Rushdie retrata é a Meca desse jogo. A surpreendente precisão espaço-temporal de Fúria se deve, principalmente, à avalanche verborrágica de referentes impostos pela mídia: a enumeração de nomes de atores, atrizes, modelos, programas de televisão, filmes e objetos de consumo.

Habilmente, Rushdie apela para os ícones da sociedade de consumo para enunciar uma fala que busca a desestabilização da lógica de dependência cultural inerente ao velho sistema colonial, que ainda opera na sociedade moderna, e a conseqüente compreensão de que os tecidos sociais nos quais estamos inseridos constroem seus símbolos, mitos contemporâneos, que são primordialmente discursivos, como nos recorda Roland Barthes, em Mitologias (1999).

Se considerarmos que todo discurso é ideológico, chegaremos à conclusão de que o que chamamos de literatura acaba por refletir o embate entre múltiplas ideologias.

          Armando Gnisci (1999) insiste em afirmar que o processo de descolonização passa pela desconstrução dos modelos de dominação que têm orientado não só os estudos culturais como também uma boa parte dos estudos literários contemporâneos. Baseado nessa afirmação, ele opõe o conceito de “Literatura Global”, que é orientada pelo mercado e pela indústria de cultura de massa, ao conceito de “Literatura dos Mundos”, uma literatura que recusa o processo de assimilação que lhe é imposto, em prol do reconhecimento da diversidade cultural. Essa literatura é o locus do diálogo entre os “mundos”, isto é, entre indivíduos de etnias e heranças culturais diversas.

          Em busca dos entre-lugares de onde surgem essas vozes, Gnisci dirige o seu olhar para o escritor migrante, que, escrevendo em um idioma que não é o seu, imprime sua marca e a de suas origens em uma literatura nacional que, não sendo originalmente sua, o absorve e incorpora, fazendo com que, na prática, a descolonização literária saia definitivamente das mãos do colonizador.

          O caminho para a descolonização, que a literatura torna possível, é, portanto, o diálogo intercultural: um diálogo franco, realista, sem a “pátina” visionária de uma aldeia global que nos tem sido imposta e que nada mais é do que uma forma de dominação constituída sobre a assimetria das relações.

 

 

Referências bibliográficas

 

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[i]  Texto original: Lo scrittore migrante, anche se non scrive sulla migrazione, sa tutto questo e lo pone come poética, come tema comune e come pietra di paragone e pietra d’inciampo dellepoca in cui viviamo (vedi Rushdie, Kureishi e Walcott). Minha tradução.

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