Sincronía Primavera 2007


O mar de histórias revisitado: uma análise de Shalimar, o equilibrista, de Salman Rushdie

Shirley de Souza Gomes Carreira

UNIGRANRIO

Brasil


Em Imaginary Homelands (1991), Salman Rushdie afirma ser um "homem traduzido"; um escritor migrante, que, tendo passado pela experiência de viver em outros países, imprime em sua obra as inquietações do diálogo entre culturas.

Shalimar, o equilibrista (2005), seu último romance, contém uma combinação de todos os temas recorrentes em sua obra, promovendo não apenas o diálogo entre ficção e história, mas também um mergulho nas motivações humanas e na reflexão sobre questões identitárias. Ao revisitar temas como vergonha e honra, dando-lhes um tratamento atualizado pelo olhar contemporâneo sobre a questão do terrorismo e da violência, Rushdie empreende uma viagem geográfica e histórica, focalizando acontecimentos ao longo de setenta anos do século XX.

Acompanhá-lo nessa viagem pelo seu "mar de histórias" implica uma reflexão profunda sobre o que significa habitar "o terceiro espaço" definido por Homi Bhabha, isto é, o locus da ruptura das narrativas coloniais hegemônicas e do surgimento de uma representação mútua e mutável da diferença cultural.

O romance é composto por cinco capítulos cujos títulos correspondem aos nomes de personagens: Índia, Boonyi, Max, Shalimar e Kashmira, preconizando uma focalização específica nas histórias pessoais de cada um e sugerindo uma narrativa episódica.

Rushdie deu a um dos personagens principais o nome de um famoso diretor de cinema e a crítica afirma, categoricamente, que não há relação alguma entre o Max Ophuls real e o ser de papel criado pelo autor. No entanto, um exame mais detalhado da estrutura narrativa leva-nos a crer que Rushdie adota técnicas típicas da linguagem cinematográfica de Ophuls em seu romance. A par da construção episódica, usada freqüentemente pelo diretor, uma dessas técnicas consiste em focalizar exaustivamente uma personagem e, subitamente, deixá-la ir. O primeiro capítulo parece-nos ter sido construído segundo esse princípio, uma vez que Índia Ophuls concentra a atenção do narrador e, subitamente, sai de cena.

A narrativa começa in media res, situando-se no mundo contemporâneo e focalizando especialmente as relações entre Índia Olphus e seu pai, um ex-embaixador americano que esteve a serviço na Índia, e o relato de seu assassinato pelo motorista de origem muçulmana: Shalimar, a personagem que dá título ao romance.

O narrador onisciente fornece, aos poucos, os dados necessários para que se forme uma imagem precisa de Índia: uma jovem de personalidade forte, com experiências extra-sensoriais, que padece de um imenso vazio: a ausência da mãe, de quem era proibido falar. Os conflitos interiores da personagem se deixam revelar na sua rejeição ao próprio nome: Índia.

Índia lhe parecia errado, dava a sensação de exotismo, de colonialismo, sugeria a apropriação de uma realidade que não era a dela e, insistia para si própria, não lhe servia de jeito nenhum, não se sentia como Índia, mesmo que sua cor fosse rica e intensa, o cabelo preto e lustroso. Não queria ser vasta, nem subcontinental, nem excessiva, nem vulgar, nem explosiva, nem apinhada, nem antiga, nem ruidosa, nem mística, nem de forma alguma Terceiro Mundo. Bem ao contrário. Queria se apresentar como disciplinada, bem-cuidada, nuançada, interiorizada, não religiosa, discreta, calma. Falava com sotaque inglês. (...) Essa era a persona que queria, que havia construído com grande determinação. (p.13)

A personagem é construída como alguém que instintivamente procura escapar às próprias origens, ao seu mundo. O nome que rejeita é um elo tênue com a sua verdadeira história; a história que por longo tempo lhe fora negada. Tudo o que sabia de si mesma era o que lhe haviam contado: filha ilegítima, fruto de um caso de amor entre seu pai e uma indiana, recebera da esposa legal de seu pai o nome que detestava, bem como a misericordiosa omissão do fato de que sua mãe estava viva e a abandonara.

A sua dualidade de caráter se descortina ante os olhos do leitor: de um lado, a garota de comportamento conturbado, que lutava boxe, praticava arco e flecha e se envolvia com delinqüentes; do outro, a mulher que aprendera a se controlar, a fazer o jogo social e que se perturbava ainda com a capacidade de prever acontecimentos e de falar, dormindo, um idioma que desconhecia. Os conflitos de Índia Ophuls remetem, ainda que de forma velada, ao dilema enfrentado pelo migrante, que oscila entre as próprias raízes e a tradição da pátria de adoção.

Os acontecimentos que antecederam o assassinato de Max são narrados em uma sucessão de idas e vindas, fluxos de lembrança, que se assemelham à técnica de filmagem de Ophuls de ir e vir em um mesmo trajeto da câmera. Assim é que Índia evoca a memória daquilo que ela denomina "maus presságios": indícios de que algo grave aconteceria a seu pai. A voz gutural que ouve no interfone momentos antes de seu pai ser assassinado faz com que se recorde do som que ouvira no gravador utilizado para captar a sua voz durante o sono, que alguns dos seus amantes afirmaram soar como ela estivesse falando árabe. Ela sabe que é a voz de Shalimar, assim como sabe que seu inconsciente detém uma memória inexplicada de um povo, de um país e de um idioma que nunca fora seu.

A morte do pai, assassinado por Shalimar, pretenso motorista, que, na realidade, era nada mais nada menos do que o verdadeiro marido de sua mãe, traz à baila a história não contada, porém intuída em sua intensa rejeição ao próprio nome.

Quando adolescente fora rebelde até o máximo que alguém pode ser: até a degradação do corpo e do espírito. Seu pai pagara caro para que os episódios dessa fase turbulenta fossem "esquecidos". Mas era essa mesma turbulência que concretizava em ações aquilo que eclodia dentro de si: a ausência de raízes, o desconhecimento do eu.

Segundo o autor, a questão da identidade é muito importante no romance, pois "o romance é sobre pessoas que não sabem quem são", vivendo em um mundo subtraído de valores e levadas a atitudes extremas.

O segundo capítulo, intitulado "Boonyi", narra a história da mãe de Índia Ophuls. Rushdie constrói uma belíssima metáfora das pulsões de vida de morte, Eros e Tanatos, através de uma alegoria cosmológica que relata a existência dos planetas-sombra Rahu e Ketu: invisíveis, porém capazes de reger as paixões humanas, o conflito entre a escolha moral e a social; a flutuação entre o amor e o ódio.

A espinha dorsal do romance é a história de amor entre Boonyi e Shalimar, que dialoga com o Ramayana. No épico védico, o deus Rama sai para caçar e pede a seu irmão Lakshamana que cuide de sua esposa, Sita. Como a caçada era um ardil preparado pelo demônio Ravana para seqüestrar Sita, Lakshamana ouve uma voz idêntica à voz do irmão pedindo socorro e parte para ajudá-lo, não sem antes traçar um círculo mágico para proteger a esposa de seu irmão. Ravana disfarça-se de Brahmana e aproxima-se dela pedindo comida. Seguindo a tradição védica, por compaixão, Sita sai do círculo para dar-lhe comida, e é feita prisioneira.

No romance, Boonyi e Shalimar, jovens da mesma idade e filhos de famílias amigas, embora de religiões diferentes, começam a sentir uma imensa atração um pelo outro e acabam por relacionar-se sexualmente. No dia em que ambos decidem consumar seu amor, Boonyi pensa na história do Ramayana, fazendo uma analogia entre as suas motivações e as da esposa de Rama, indagando-se se Shalimar seria o seu herói épico ou o seu demônio. Ao tentar explicar a si mesma o que sentia pelo homem ao qual decidira se entregar, pensa consigo mesma: "Ela o amava porque ele não machucaria – nem saberia como! – qualquer ser vivo. Como poderia fazer-lhe mal se não faria mal a uma mosca?"

Com a aparente inconseqüência dos amantes, nessa mesma noite, Shalimar lhe pede que nunca o deixe, pois se ela o fizer ele jamais a perdoará e se vingará, matando-a e matando até mesmo os filhos que venha a ter com outro homem. A resposta de Boonyi é tão inconseqüente quanto o pedido de seu amante: "Como você é romântico. Você diz as coisas mais doces." (p.67)

Segundo Freud, o homem é dotado de duas categorias de instintos: ou tendem a conservar e unir (os instintos eróticos de Eros), ou tendem a destruir e matar (instintos de agressão e destruição, ou Tanathos). Qualquer um desses instintos é tão imprescindível quanto o outro, e de sua ação conjunta e antagônica surgem as manifestações de vida. A perenidade da pulsão de morte e de sua atividade no aparelho psíquico constitui um dos pólos do dualismo na constituição do sujeito, mesmo que agindo em silêncio. O silêncio pode ser rompido quando tal pulsão orienta-se contra o eu ou se dirige contra o mundo exterior com toda sua potência de agressão e destruição do objeto. Os objetos são esvaziados em sua qualidade de outro, de semelhante. Seguindo tal raciocínio, Tanatos pode atingir níveis arriscados quando o laço social se enfraquece pelo afastamento de Eros.

A simbologia dos planetas-sombra está intimamente relacionada à explosão da violência no âmbito do romance. Na tentativa de "dizer a verdade sobre as motivações humanas", Rushdie entrelaça acontecimentos históricos aos ficcionais.

Em sua obra como um todo, Rushdie estabelece um amplo diálogo com a História. Shalimar, o equilibrista dialoga com inúmeros eventos históricos, mas focaliza, em particular, as relações entre a Índia e o Paquistão em sua luta pela posse da Caxemira.

A Caxemira evocada na longa digressão que começa no capítulo 2, uma narrativa em flashback, com a finalidade de fornecer ao leitor o conhecimento sobre os eventos que levaram ao assassinato do embaixador, é edênica, no sentido de não comportar segregação religiosa ou sexual. Sobre a sua visão da Caxemira, o autor explica:

Veja, o islã na Caxemira sempre foi místico, gentil e aberto, não como o dos jihadistas. Não havia segregação sexual. Havia uma grande mistura religiosa. Mas então vieram os grupos extremistas, que tentaram impor à Caxemira uma idéia de islã estranha a ela. A violência funcionou e hoje na Caxemira se vêem mulheres cobertas, o que é anticaxemirense. Sempre me senti mal sobre isso, porque minha família é de lá, passava férias lá quando criança. Para todos na Índia, a Caxemira é o espaço encantado da infância. E foi destruído, obrigando-nos a viver num mundo sem sonho. Meu livro é um pouco sobre como viver num mundo no qual seus sonhos são destruídos.

No âmbito do romance, o fim da convivência pacífica entre diferentes que o autor menciona na entrevista citada é simbolicamente representado pelas relações entre as aldeias de atores e as aldeias dos cozinheiros. Quando os aldeões de Pachigam, contadores de histórias de clowns, passaram também a oferecer banquetes, estabeleceu-se uma rivalidade entre Shirmal, a principal aldeia cozinheira, e Pachigam, desencadeando a "guerra das panelas". Segundo Nazarébadur, uma vidente local, aquele era o primeiro pedregulho que começa uma avalanche.

Pachigam é descrita como uma aldeia em que os diversos grupamentos religiosos conviviam placidamente. Quando o relacionamento entre Boonyi e Shalimar é revelado, a aldeia opta por apoiá-los e fazer o casamento. A rivalidade religiosa começa nos preparativos para o casamento e só é solucionada com a decisão de realizar duas cerimônias: uma muçulmana e a outra hindu.

A ação de líderes religiosos extremistas, como o próprio Aiatolá Khomeini, é representada no romance por meio da figura bizarra do mulá de ferro. O mulá surge no romance como a encarnação de uma das muitas lendas que circulavam na Caxemira, como, por exemplo, a de que os restos acumulados dos artefatos de guerra começaram a ganhar vida e assumir a forma humana. Os homens que nasceram miraculosamente desses metais de guerra enferrujados eram santos de uma nova espécie, que andavam pelas aldeias a pregar resistência e vingança. A lenda dizia que, se alguém batesse em seus corpos, seria possível ouvir o retinir metálico. Eram à prova de balas e tinham um hálito que rescendia a pneu de borracha queimado.

A ação do mulá se resumia a insuflar o ódio contra a aldeia de Pachigam, que se mostrava condescendente com as diferenças religiosas e que tinha apoiado o casamento abominável entre Boonyi e Shalimar. O Islã que o mulá defendia era fundamentado no extremismo e na violência.

O terceiro capítulo gira em torno de Max Ophuls. Ao construir a personagem, Rushdie mistura dados da biografia do diretor de cinema homônimo a relatos típicos de romances sobre o nazismo e o holocausto, bem como faz alusões a fatos e figuras históricas, que entrelaça frouxamente à história das personagens ficcionais.

Um episódio digno de nota é a referência à construção do Bugatti Racer, modelo 100, avião concebido em 1937 para quebrar o recorde de velocidade mundial na Copa Alemã. Os registros históricos atestam que ele jamais saiu do solo, tendo permanecido oculto durante a Segunda Guerra Mundial e, posteriormente, levado para a América. No entanto, o romance cria não apenas uma versão militarizada do Racer como também atribui a Max Ophuls a proeza de ter pilotado o avião, concretizando na ficção o que na vida real passou à história como um mito da resistência. O artifício é utilizado na composição da personagem para atribuir-lhe um caráter heróico e mítico.

Nesse ponto, a narrativa é interrompida por um narrador intruso que diz:

Aqui, também, um leitor pouco generoso poderia perceber uma fusão calculada da história de Max com a de outra figura muito amada. Em 1940, o escritor e piloto Antoine de Saint- Exupéry desempenhara um papel heróico na batalha da França, depois partira com seu esquadrão para o Norte da África e mais tarde chegara a Nova York. Já era o autor famoso de Vôo noturno, mas quando Max Ophuls, em suas memórias fez referência a um livro posterior de Saint-Exupéry, foi culpado de anacronismo. Na época de seu vôo para a Gergovia, Pilote de guerre ainda estava sendo escrito (...) era então impossível que Max Ophuls no Bugatti Racer tivesse qualquer conhecimento do seu conteúdo. (p. 163)

A intrusão do narrador, recurso que Rushdie usa freqüentemente, desvela, intencionalmente, o estatuto ficcional da obra.

Max é descrito como um herói extremamente sedutor que participou de momentos importantes da história do século XX, casou-se com uma colega dos tempos de militância na resistência, tornou-se embaixador americano na Índia e abdicou de tudo por não saber resistir às pressões dos planetas-sombra. Ao render-se à sua paixão súbita por Bhoonji, Max muda o curso de sua própria história, ignorando, até mesmo, os sinais de que, para ela, ele representava apenas a oportunidade de fuga de um mundo que se revelara pequeno ante as suas ambições.

Quando Boonyi Noman dançou para ele no abrigo de caça de Dachigam, na Caxemira, ele pensou naquelas emplumadas coristas de olhos mortos engalanadas em fumaça de charuto nazista, exibindo as coxas com ligas. As roupas eram diferentes, mas ele reconhecia a mesma fome dura no olhar dela, a prontidão do sobrevivente em suspender o julgamento moral na presença da imaginada oportunidade. Mas eu não sou um nazista, pensou. Sou o embaixador americano, o cara do chapéu branco. Sou, graças a Deus, um dos judeus que sobreviveram. Ela mexeu os quadris para ele e ele pensou, sou também um homem casado. Ela mexeu os quadris de novo e ele parou de pensar. (p.143)

A motivação de Boonyi a levara a abandonar o marido e sua aldeia natal e a ter uma filha do embaixador. Ao reconhecer a fragilidade do seu sonho pessoal, ela começara a sentir saudade de sua antiga vida e de sua aldeia, entregara-se ao vício do ópio e do excesso de comida, transformando-se em uma mulher triste e obesa. Quando, finalmente, volta à terra natal sem a filha, que fora obrigada a entregar à mulher de Max em troca da oportunidade de voltar à Caxemira, ela percebe que sua verdade a enganara, fazendo-a andar em círculos e retornar para o local onde tudo havia começado. No entanto, voltara para formas diferentes de morte, a morte social e a física:

"Eles mataram você", disse ela. "Depois do que você fez. Disseram que você estava morta para eles, anunciaram a sua morte e obrigaram todo mundo a fazer um juramento. Foram até as autoridades, preencheram um formulário, fizeram com que fosse assinado, selado, e agora você está morta, não pode voltar" (p.222)

Em Shame, Rushdie já havia abordado o tema da vergonha e da honra, que, a seu ver, são versões extremistas de um Islã que não é o seu. O destino de Boonyi e Shalimar, assim como o de Max, revela-se sob a forma de múltiplas versões desse extremismo.

O quarto capítulo, que se intitula Shalimar, o equilibrista, atesta a metamorfose da personagem título. Noman Sher Noman, o menino que nascera incrivelmente belo, mas que ainda assim assustara sua mãe, que vira a sombra da morte em seus olhos, acreditava que deveria se transformar em Shalimar, o equilibrista; crescer, deixar seu pai orgulhoso de suas aptidões e consquistar a mulher pela qual se apaixonara.

No entanto, Boonyi o abandonara e a linha tênue entre o amor e o ódio se dissolveu ante os seus olhos, trazendo para o seu mundo a violência e a morte. Shalimar acalentara, ano após ano, o desejo de matar a esposa adúltera e seu amante. Em uma tentativa de evitar o crime, foi decidida a morte oficial de Boonyi, lavando, assim, a honra do marido abandonado. O juramento de aceitação que fizera ao seu pai e ao pai de Boonyi o impedira de agir, mas o ódio permanecia dentro dele, assim como a frase que pronunciara tantos anos antes, em seu primeiro ato de amor.

Nesse ínterim, juntara-se à Força Nacional de Libertação da Caxemira. Dos tempos da paixão que o unira a Boonyi restara um canal de comunicação muda, quase sobrenatural, que, ainda era mantido por uma espécie de anti-amor; emoções que eram os opostos sombrios do amor: o medo dela e o ódio dele. Assim, ambos sabiam que o reencontro seria marcado pela morte. Outrora, cada um a seu modo, tinham desejado gerenciar o próprio destino, até o momento em que perceberam ter passado de mestres a vítimas de Kal, o tempo. Os dados históricos incorporados ao romance marcam essa passagem.

A dura realidade da guerrilha; das câmaras de tortura secretas de Badami Bagh; da violência praticada em nome de ideais obscuros e a destruição da vila ficcional de Pachigam são alguns dos eventos narrados no romance com o intuito de lembrar ao leitor que a linha entre ficção e realidade é tênue: ambas são interligadas pela vontade do homem.

No capítulo cinco, após a morte do pai, Índia assume a sua verdadeira identidade e seu verdadeiro nome, Kashemira e vai à Índia, em busca da mãe desconhecida, que fora também assassinada por Shalimar. O desfecho do romance é preconizado pela comunicação silenciosa entre Índia e o assassino de seus pais, renovando, em outro momento histórico, os laços que ligaram Boonyi e o marido. A vidência das personagens, o folclore e os mitos que o autor recupera em seu texto constituem o traço do realismo mágico no romance:

(…) começara a ouvir a voz dele dentro da cabeça. Ou não exatamente uma voz, mas uma transmissão não verbal incorpórea, como um guincho maluco cheia de estática e discórdia interna, ódio e vergonha, arrependimento e ameaça, maldições e lágrimas; como um lobisomem uivando para a lua. Nunca havia experimentado nada assim antes e apesar do seu ocasional poder de previsão passou a ter muito medo dessas manifestações auditivas, dessa transformação em médium para um vivo (…) Ele encontrara a mãe dela nela e agora aquela mãe dentro dela estava ouvindo o silencioso grito demente desse homem. (p.331)

Assim como Shalimar fizera com sua mãe, depois de sua fuga, Índia envia-lhe cartas na prisão. Define a si mesma como uma sombria Sherazade, que escreve dia após dia ao homem que matou seus pais para contar-lhe a história de sua morte. E o faz à medida que se prepara para uma guerra, treinando tiro ao alvo e artes marciais. Estabelecera-se entre ela e o assassino um desafio.

Shalimar, o equilibrista, escapa da prisão, "correndo pelo ar como se estivesse simplesmente subindo uma montanha". (p. 384) Ela pressente a sua chegada, assim como, há tanto tempo atrás, a sua mãe pressentira que ele representava a morte. Mas, desta vez, a espera é diferente. O romance termina com a flecha que ela envia pelo ar até o alvo, tão próximo que torna o erro impossível.

No romance, as paixões humanas e a violência andam juntas, como sempre andaram no curso da história. A corda feita de ar na qual Shalimar aprendeu a se equilibrar é simbólica. Não representa apenas as rotas secretas do mundo invisível, que libertam o equilibrista do mundo ilusório em que a maioria das pessoas vive; como afirma o narrador. A corda é o símbolo do caminhar do homem, em sua tentativa de manter-se ereto mediante as forças opostas de suas próprias paixões.

 

Referências Bibliográficas

ASSOUN, P. L. Freud et les sciences sociales -Psychanalyse et théorie de la Culture. Paris: Armand Colin, 1993.

BIRMAN, J. Psicanálise, Ciência e Cultura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1994.

FREUD, S. A sexualidade na etiologia das neuroses (1898). Em Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. III, 1980.

___. Os Três ensaios para uma Teoria da Sexualidade (1905). Em Edição Standard das Obras

Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. VII., 1980.

GUTERMAN, M. & COLOMBO, S. Entrevista. Disponível em:

http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u51779.shtml

HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

RUSHDIE, Salman. Shalimar, o equilibrista. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

____. Shame: a novel. New York: Picador USA, 2000 [1983].

____.Imaginary Homelands. Essays and criticism 1981-1991.Londres: Granta Books, 1991.


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