Sincronía Summer 2008


Análise comparativa da representação da mulher em Shame, de Salman Rushdie, e O deus das pequenas coisas, de Arundhati Roy

Shirley de Souza Gomes Carreira

UNIGRANRIO


 

1.Rushdie e a literatura indiana contemporânea

No século XIX, o imperialismo, em sua política expansionista, sedimentou a noção de superioridade da raça branca, bem como reorganizou o mundo com base na antinomia dominador/dominado, traçando uma linha precisa entre “centro” e “periferia”, entre “civilização” e “barbárie”. As duas grandes guerras promoveram a desestabilização dessas antinomias, deslocando os olhares para as minorias raciais e para os movimentos internacionais de refugiados. Esse deslocamento foi, igualmente, gerado pelo processo de descolonização, que ensejou o surgimento de um novo campo de investigação: o pós-colonialismo.

Os estudos pós-coloniais estão centrados nos efeitos da colonização sobre as culturas e sociedades colonizadas, atentando para as manifestações culturais, entre elas a expressão literária, das nações que conquistaram a sua independência após um longo período de dominação política e cultural.

A ótica pós-moderna, por sua vez, tem buscado trazer à baila as vozes das culturas e dos segmentos sociais periféricos, em um processo de “descentramento”, como afirma Linda Hutcheon (1991), cujo objetivo é “ouvir as margens”.

Graças a essas mudanças, o século XX vivenciou a redescoberta literária do Oriente e não há dúvida quanto ao fato de que o caminho para a visibilidade da literatura indiana contemporânea de expressão inglesa foi aberto por Salman Rushdie, escritor indo-britânico, que, na experiência do exílio, trouxe a Índia para o centro das atenções ao ser condenado à morte pelo Aiatolá Khomeini, muito embora não se possa ignorar a presença expressiva de outros escritores indianos, tais como Ruth Prawer Jhabvala, Bharati Mukherjee e Arundhati Roy.

Obviamente, a abertura conquistada por Rushdie tem seus prós e contras. Se, por um lado, permite ao Ocidente lançar ao Oriente um olhar diverso da “imagem especular” descrita por Said em Orientalismo, por outro, instaura uma espécie de linhagem que tende à canonização de obras que são, por sua própria constituição, não canônicas.

Rushdie desenvolveu um estilo marcante, cuja espinha dorsal tem sido o entrelaçar entre ficção e história, trazendo para a arena do discurso temas como o hibridismo, o pós-colonialismo, o multiculturalismo e a construção da identidade nacional. Ao longo de sua produção literária, alguns traços estilísticos têm-se definido, como, por exemplo, a construção de histórias genealógicas, ou fábulas de família, (no rastro de Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Márquez), a presença do realismo mágico e um intenso diálogo intertextual com obras da literatura ocidental e oriental. Tematicamente, seus romances conduzem uma história política que se encontra tenuamente oculta no universo ficcional. Essa biografia imaginária pode ser, portanto, considerada como metáfora da história nacional. Assim como, em Cem anos de solidão, Gabriel Garcia Márquez narra a história de uma família à medida que recria a história de um espaço, a América Latina, Rushdie, em Midnight’s Children(1980) e Shame(1983), recria, respectivamente, a história política da Índia e do Paquistão. Ao fazê-lo opta por escrever na língua do ex-colonizador: o inglês. Essa opção tem dois objetivos claros, segundo o próprio autor: relatar a sua experiência de “homem traduzido”, exposto à cultura de três países distintos (Índia, Paquistão e Inglaterra), e denunciar o efeito pernicioso da tradição sobre os indivíduos, ao perpetuar uma “mentalidade de gueto”.

Claro está que a visão de Rushdie, e, conseqüentemente, a sua recriação, parte de uma ótica de escritor migrante, um indivíduo que, segundo o autor (Rushdie: 1991, 17), tem de enfrentar cotidianamente os problemas de definição, a dupla perspectiva de quem se vê, a um só tempo, dentro e fora da sociedade em que vive.

Pankaj Mishra, escritor e crítico indiano que, enquanto trabalhava como editor para a divisão indiana de Harpercollins, “descobriu” Arundhati Roy, afirma que a obra de Rushdie, e mais especificamente Midnight’s children, inaugurou um padrão de escrita que tem sido seguido por boa parte dos escritos indianos contemporâneos; filiação esta que ele, ironicamente, denomina “Rushdie-itis”. Para Mishra, o que se apresenta ao mundo como original em uma época tende a se esgotar vinte e um anos depois e nem mesmo Rushdie está imune ao próprio “efeito” (se for tomado como exemplo discursivo a personagem Grimus, do livro homônimo).

A crítica tem interpretado o único romance de Arundathi Roy, O deus das pequenas coisas (1997), como uma obra produzida no rastro dos romances de Rushdie, conferindo-lhe, assim, o papel de reprodutor parcial de uma fórmula bem sucedida, sem, no entanto, negar-lhe o mérito próprio. Essa filiação deve-se, principalmente, à estratégia narrativa da autora, que muito se assemelha à de Rushdie, principalmente no que diz respeito à narrativa genealógica, bem como à temática: a história política e social da Índia. No entanto, Arundhati Roy, à exceção de alguns cursos que fez no exterior, sempre viveu na Índia, o que, naturalmente, faz com que sua compreensão histórica e social de seu país seja fruto de uma experiência bastante diferente daquela vivenciada por Rushdie. O deus das pequenas coisas distancia-se de seu provável modelo, encontrando a própria voz.

Tanto nos romances de Rushdie como no romance de Roy, a história nacional se entrelaça com a história familiar e ambos os autores conferem à mulher um papel de relevância em suas obras.  Este ensaio propõe analisar as personagens femininas de Shame e O deus das pequenas coisas, buscando provar que os dois autores, a partir de uma mesma estrutura básica, a história genealógica, desenvolvem representações femininas que estão, primordialmente, subordinadas ao princípio da focalização. No caso particular de Rushdie, a história pessoal das personagens está interligada à história política da nação e mesmo os traços distintivos de personalidade são alegoricamente enfatizados de modo a tipificar o entrelaçar da história com a ficção. Na obra de Roy, no entanto, existe um mergulho nos dramas pessoais que estão relacionados à história de um modo mais concreto e humano.

            2. A história como background

            A história política da Índia está entrelaçada a do Paquistão e, portanto, faz-se necessário explicitar, ainda que em linhas gerais, os acontecimentos que levaram à separação dos dois países e aos conflitos posteriores, a fim de que o diálogo entre a ficção e a história possa ser compreendido.

           No século XIX, o Império Britânico assumiu o controle do subcontinente indiano, assim permanecendo até 1947, quando, sob a liderança de Mohandas Gandhi e Jawaharlal Nehru, em uma atitude de resistência não-violenta ao colonialismo britânico, a Índia conquistou a sua independência. O subcontinente indiano foi, então, dividido entre a Índia milenar e o estado mulçumano do Paquistão. Desde 1933, já se cogitava a criação de um estado que unisse politicamente todos os mulçumanos da Índia. A palavra Paquistão provém da palavra “pak”, que significa “ritualmente puro” e, ao mesmo tempo, contém as letras iniciais dos principais povos que o compõem : Punjabs, Afegãos, Khashmirs e Sinds.

             Os problemas políticos do Paquistão foram gerados, primeiramente, pela intensa migração, pois cinco milhões de sikhs e hindus retiraram-se do país, que, em contrapartida, recebeu oito milhões de mulçumanos. Esse desequilíbrio entre o número de habitantes e o espaço territorial do país gerou um descontentamento com as fronteiras, levando o Paquistão à guerra contra a Índia por três vezes, em 1948 e em 1965, em disputa pelo território da Caxemira, e em 1970, por causa do apoio indiano à independência do Paquistão Oriental. A divisão entre Paquistão Ocidental e Oriental surgiu em virtude de o país ser formado por duas áreas não contíguas e os constantes conflitos entre as duas partes culminaram em uma guerra civil que, com a intervenção da Índia em favor do Paquistão Oriental, propiciou o surgimento de um novo Estado, Bangladesh, em 1971.

            O Paquistão Ocidental, que passa então a ser reconhecido apenas como “Paquistão”, teve em Zulfikar Ali Bhutto o seu primeiro presidente, que criou um regime socialista com características populistas. A crise do petróleo, em 1973, gerou efeitos que foram responsáveis pelo fracasso de sua plataforma política e, em conseqüência, Bhutto foi deposto, em 1977, por um golpe de estado desfechado pelo General Zia-Ul-Haq, que o condenou à morte e adotou uma política colaboracionista com os EUA, tendo em vista a invasão soviética ao Afeganistão. Após a morte de Zia, em um desastre aéreo, em 1988, começou a transição para a democracia, que culminou com a eleição de Benazhir Bhutto, filha do ex-primeiro ministro.

           Em Shame, pode-se encontrar os equivalentes ficcionais das personagens históricas mencionadas: Iskander Harappa é a reelaboração ficcional que Rushdie faz de Bhutto e o General Raza Hyder corresponde ao General Zia-Ul-Haq, assim como Arjurmand, “a virgem de calças de ferro”, é obviamente uma recriação de Benazir Bhutto.

           A independência da Índia, por sua vez, não trouxe aos indianos uma expectativa de melhoria de vida, uma vez que a religião, o idioma e o sistema de castas continuaram a exercer a função de determinantes da organização política e social do país, ainda que, modernamente (desde 1950), haja leis contra a discriminação com base no sistema de castas. Esse sistema antiqüíssimo, data de cerca de 1200 a.C., está relacionado não apenas à ocupação como também aos hábitos de alimentação e interação entre os seus membros. Há cerca de 3000 castas e 25.000 subcastas na Índia, as quais estão relacionadas a quatro “varnas” básicos: brahmins (clero), kshatryas (guerreiros), vaishyas (comerciantes) e shudras (trabalhadores). Fora do sistema estão os “intocáveis”, que exercem funções “impuras”, como, por exemplo, a coleta do lixo e a limpeza de sanitários. Gandhi fez uma tentativa de elevar o seu status, denominando-os “Harijans”, ou “crianças de Deus”, comendo e interagindo com eles. Na realidade, quase não existe mobilidade no sistema de castas e o mais comum é que o individuo viva e se case dentro de uma mesma casta.  Segundo relatórios da ONU, há cerca de 115 milhões de crianças na força do trabalho e cerca de 300 milhões de pessoas em condição de vida miserável na Índia, a maioria delas “intocáveis”. Muito embora haja um esforço por parte do governo no sentido de promover uma melhoria de vida das classes mais baixas, por meio de programas visando à educação pública, reserva de vagas em cursos superiores e 50% das vagas em empregos públicos, a casta ainda tem um valor significante na vida política do país, assim como em costumes sociais, como o casamento.

          Em termos políticos, a história da Índia foi também marcada pela repressão. Indira Gandhi, filha e sucessora de Nehru, conseguiu, em dois períodos de mandato, acumular poderes impensados, adotando uma política centralizadora e cerceando a liberdade civil e a oposição política. O seu assassinato trouxe à tona o medo de uma nova era regada a sangue e guerra civil. Seu filho Rajiv assumiu o cargo de primeiro-ministro após a morte da mãe, vindo também ele a ser assassinado em maio de 1991.

 

3. A nação como “comunidade imaginária”                                       

Em Imaginary Homelands, Salman Rushdie afirma que escritores como ele, exilados, migrantes ou expatriados, são permanentemente assombrados por uma sensação de perda, uma certa urgência de olhar para trás, ainda que sob o risco de serem transformados em estátua de sal (Rushdie: 1991, 10). Esse comentário é feito a partir de uma reflexão sobre a Índia da qual o autor é capaz de recordar-se: não exatamente a Índia real, a pátria perdida, mas a terra natal imaginária, a Índia que é fruto de uma elaboração mental. Assim sendo, seu romance é “um romance de memória e sobre a memória” (1991,10).

Essa concepção do espaço físico, relacional e histórico que ele propõe narrar em seus romances ( Shame focaliza a história do Paquistão, país onde Rushdie viveu por algum tempo antes de ir para a Inglaterra e cuja história está entrelaçada à história da Índia) torna-se extremamente relevante se considerarmos que o autor interpreta a própria identidade como plural e parcial.

Tanto Rushdie quanto Roy escreveram seus romances em inglês. Essa opção tem um objetivo diverso, no que diz respeito aos dois autores. Rushdie assume publicamente uma identidade híbrida e narra a nação do ponto de vista do exilado, enquanto que Roy opta por uma abordagem cotidiana, distante do pitoresco e do exótico, típica de alguém que vivencia o dia-a-dia do seu país.

Ao ser, recentemente, incitado a tecer um comentário sobre o livro de Roy, Rushdie afirmou que a autora de O deus das pequenas coisas trata a Índia como um lugar comum, coisa que o país nunca teria sido. A resposta de Roy foi bastante objetiva: “A Índia é comum para mim, porque é a minha realidade”.

Essa distinção em termos de focalização perpassa igualmente a caracterização das personagens e afeta, conseqüentemente, a representação da mulher, objeto deste ensaio.          

            4. A representação da mulher em Shame, de Salman Rushdie

            A experiência pessoal de Rushdie exemplifica o conceito de “hibridismo” desenvolvido por Homi Bhabha, segundo o qual a identidade híbrida emerge da tessitura de elementos provenientes tanto do colonizador quanto do colonizado, desafiando a validade e a autenticidade de qualquer identidade cultural essencialista[1].

 

[...] se, como eu estava dizendo, o ato da tradução cultural (tanto como representação quanto como reprodução) nega o essencialismo de uma dada cultura originária, podemos ver que todas as formas de cultura estão em um processo continuo de hibridismo. Mas, para mim, a importância do hibridismo não serve apenas para traçar dois momentos originais do qual um terceiro emerge; para mim, o hibridismo é o “terceiro espaço” que possibilita o surgimento de outras posições.

      

O terceiro espaço é o entrel ugar, o local da ruptura das narrativas coloniais hegemônicas e do surgimento de uma representação mútua e mutável da diferença cultural, de onde o escritor migrante se expressa, dada a sua experiência de transculturação, isto é, a sua habilidade para transpassar culturas diferentes, de traduzir, negociar e mediar afinidades e diferenças em uma dinâmica de troca e inclusão.

Shame é um romance que busca reler a história do Paquistão sob o ponto de vista do entrelugar. Essa característica não foi compreendida em sua totalidade, o que pode ser observado a partir das críticas que têm sido feitas, por exemplo, à representação feminina. A representação da mulher na obra de Salman Rushdie tem sido alvo de uma ampla discussão acadêmica. Enquanto alguns críticos, como Damian Grant, vêem em suas personagens femininas uma denúncia da semi-escravidão da mulher nos países islâmicos, há outros, como Aijaz Ahmad e Inderpal Grewal, que as interpretam como uma ratificação de um sistema que exclui as mulheres, negando-lhes um papel social.[2]

Segundo Bhabha, o terceiro espaço é uma condição para a articulação da diferença cultural. É o espaço que detém a ambivalência do ato de interpretar, liberando-nos do compromisso com a verdade referencial. É desse lugar, e sob a ótica do sujeito cindido, que Rushdie constrói as personagens femininas de Shame. Ao fazê-lo, Rushdie afirma que sua história começa quase excessivamente masculina, muito embora as mulheres pareçam ter assumido o comando, vindo das periferias da história para exigir sua inclusão, obrigando o “autor/narrador” a encobrir a sua narrativa com todo tipo de complexidades sinuosas; a ver sua trama masculina refratada através dos prismas do seu aspecto inverso e feminino (Rushdie: 180-181).

Segundo Linda Hutcheon (1991,181), as estórias femininas explicam e até abrangem as estórias masculinas, porque numa sociedade autoritária, a repressão social e sexual reflete a repressão nacional, tanto passada como presente. Para ela, a relação do centro com o ex-cêntrico nunca é inocente.

O romance é dividido em cinco partes, cada uma subdividida em capítulos, e inicia-se com a aparente tarefa de contar a história de Omar Khayyam, personagem construída como um anti-herói, a começar pelos desvios de personalidade que apresenta em relação ao poeta homônimo, que é o seu “modelo”. No entanto, o leitor não tarda a perceber que essa primeira impressão é enganadora, à medida que, com a introdução de outras personagens e tramas que se entrecruzam, o tema real se revela, girando em torno da palavra que dá título ao romance: Sharam, shame, vergonha.

Shame é um romance sem protagonistas, sem nenhuma figura central dominante, porque é formado a partir da tessitura de histórias cuja espinha dorsal se apóia na relação entre dois conceitos cruciais nas sociedades mulçumanas: izzat e sharam,honra e vergonha. Izzat corresponde à honra familiar, que só pode ser preservada na medida em que as mulheres experimentem o sentido de sharam, isto é um sentimento de “embaraço, decência, modéstia, timidez, o senso de ter um lugar especifico no mundo”(Rushdie: 1983,33). Ambos os conceitos impõem à mulher mulçumana um papel passivo, subalterno, que, no romance, paralelamente, se presta à leitura crítica da história oficial, mostrando que o conceito de honra, bem como o de vergonha, assume uma nuance diferente no universo masculino e no âmbito político. Em uma entrevista concedida a Una Chaudhuri (1990), Rushdie afirmou que, ao escrever o romance, interessou-lhe a relação entre o sentimento de vergonha e a violência e a eclosão desta como uma força sobre-humana.

A ação se passa em três núcleos familiares distintos: a família Shakil, a família de Raza Hyder e a família de Iskander Harappa. Todas as histórias familiares são apresentadas através da história pessoal de uma mulher e cabe a Omar Khayyam Shakil o papel de elo entre os núcleos. A história começa com o relato da morte do avô de Omar, o velho Shakil, que parte deste mundo gritando os piores impropérios imagináveis e revelando às suas três filhas que o seu legado, ao invés da fortuna que imaginavam ter, era uma série de dívidas contraídas graças à sua incompetência financeira. Elas tinham vivido em reclusão até o dia da morte do pai e a súbita ruína, ao invés de gerar desespero, produz uma inesperada reação, pois decidem dar uma festa inconcebível para quem está declaradamente falido. A sociedade local distribuía-se por dois espaços geográficos distintos: a “cidade velha” habitada pelos nativos, colonizados, e Cantt, onde viviam os sahibs, os ingleses colonizadores. Para a surpresa de todos, com exceção de uns poucos nativos, cuja riqueza servia-lhes de aval, a grande maioria de convidados era composta pelos ingleses que o velho Shakil tanto odiara. O debut das irmãs na sociedade resume-se a essa única noite e logo começa a surgir o boato que uma delas estaria grávida.

 Em seguida à festa, uma de suas empregadas contrata um habilidoso faz-tudo, Yakoob Balloch, para construir um elevador externo que pudesse ser controlado pelo lado de dentro da casa, sem que o operador pudesse ser visto, com a recomendação de que o elevador deveria conter, também, algumas armadilhas mortais contra invasores. Enormes portas de teca e latão são instaladas e fechadas, assim permanecendo por mais de cinqüenta anos. Assim, Omar Khayyam Shakil nasce e é criado em reclusão idêntica à que as irmãs sofreram na juventude e a determinação das três em ocultar qual delas é a mãe biológica faz com que ajam como um só indivíduo, sofrendo conjuntamente o desconforto da gravidez e compartilhando todas as etapas da vida de seu filho. Muito embora Rushdie tenha afirmado em inúmeras entrevistas que a imagem das três irmãs foi gerada no intuito de reproduzir os códigos de repressão social e política do Paquistão, dos quais as mulheres foram sempre as maiores vítimas, muitos críticos têm interpretado esse triunvirato materno como sendo símbolo do deslocamento, do displacement,uma vez que o próprio Rushdie é “filho de três mães” (Índia, Paquistão e Inglaterra, as suas três pátrias). Ante essa leitura, o autor admite que as irmãs possam corresponder a uma alegoria inconsciente da experiência da migração.

         A atitude das irmãs Shakil é paradoxal, pois ao mesmo tempo em que elas desafiam a rigidez de um código de conduta social, permitindo-se ter o filho tão longamente desejado, confinam-se em um auto-exílio compreendido como a única forma de superar a vergonha e a desonra. Omar é criado de modo a nunca experimentar tais sentimentos, que estariam politicamente associados à subserviência do colonizado. Após os anos de reclusão, quando finalmente se defronta com o mundo exterior, ele é capaz de perceber-se como um ser periférico, sem o sentimento de pertencimento comum a todos os indivíduos. Fisicamente e moralmente, ele é o anti-herói, usufruindo uma quase-invisibilidade, sem a obrigação de posicionar-se socialmente segundo normas específicas. Assim é que Omar Khayyam Shakil, o homem devasso, que um dia usara o hipnotismo para abusar sexualmente de uma jovem, aos trinta e um anos, tem seu destino entrelaçado ao de Sufiya Zinobia, uma jovem de doze anos, filha mais velha do General Raza Hyder.

        A história da família de Raza Hyder é contada a partir de duas personagens femininas: Sufiya Zenobia, a filha, e Bilquìs Hyder, a esposa do general. Bilquìs Hyder  é apresentada ao leitor como uma jovem sonhadora, cuja maior ambição era ser rainha, que, graças a um erro de estratégia cometido por seu pai, dono de um cinema local, se vê pobre da noite para o dia. Alheio às divisões políticas do país, que atingiam até mesmo o entretenimento, seu pai programara filmes que atendiam a ambas as facções, achando que seria possível superá-las. A conseqüência vem sob a forma de uma bomba que faz com que o cinema vá pelos ares, juntamente com seu pai, relegando-a a um estado de nudez física que é o símbolo da destruição da sua história. Coberta apenas pela dupatta da modéstia, ela é arrastada pela multidão e levada a Red Fort, o local aonde, dias antes da divisão do território indiano, os mulçumanos de Delhi foram recolhidos, e lá, ao acordar, descobre ter sido piedosamente coberta pelo casaco de um oficial, Raza Hyder, que por ela se encanta a ponto de propor-lhe casamento. Ao ser incorporada à família de Raza e ao recém-criado país, que é a versão ficcional do Paquistão, Bilquìs deixa para trás a Índia, o seu “lugar antropológico”, e, conseqüentemente, a sua própria história. Após a morte do primeiro filho do casal, o romance que sugeria um conto de fadas começa a deteriorar-se. A esperança de ter outro filho homem é frustrada com o nascimento de Sufiya e a ambição de Raza faz com que a distância entre eles aumente cada vez mais. Anos mais tarde, Bilquìs relaciona-se com o administrador do cinema local, que é assassinado a mando de Raza. A sua segunda filha, apelidada de Good News, fruto do relacionamento adúltero, passa a ser o centro de suas atenções. Com o tempo, Bilquìs começa a apresentar sintomas de desequilíbrio mental.

 Goonetilleke (1998:57) afirma que a rejeição da primeira filha é símbolo da subserviência de Bilquìs ante o patriarcalismo. Ao final do romance, quando ela passa a usar uma burqa negra e o purdah, ela assume uma atitude de pejo pelos desvarios do marido, cuja ambição destruiu os seus sonhos de mulher. Assim como um “foguete alcança as estrelas”(p.219), ele deixara para trás pessoas que tiveram um papel em sua vida, como destroços de uma nave rumo ao espaço.

No capítulo 4, intitulado “Behind the screen”[3], Rushdie faz uma digressão e uma apostrofação ao leitor dizendo: “Este é um romance sobre Sufiya Zinobia(...) Ou talvez fosse mais preciso, senão mais opaco, dizer que Sufiya Zinobia é sobre este romance”.[4] O aparente trocadilho é desfeito à medida que é revelado ao leitor o verdadeiro papel de Sufiya na história: ela é a personificação da vergonha. Filha indesejada, ela viera desfazer o sonho de Raza e Bilquìs, de que o segundo filho seria um outro menino e viria a preencher o lugar daquele que morrera. Vista como o “milagre errado”, ela é a “vergonha” de sua mãe, a prova de sua incapacidade de dar ao marido o tão sonhado sucessor. Ao nascer, ante a decepção da mãe e a raiva do pai, ela cora, e a vermelhidão do seu rosto, bem como o calor que lhe queima por dentro, são os traços ainda imperceptíveis do monstro que o sentimento feminino de inadequação, de impropriedade, construirá dentro dela, alimentando-o, até que, um dia, ele escape sob a forma de um anjo vingador, matando e destruindo os símbolos de sua humilhação.

            Os traços do realismo fantástico, presentes na obra, e mais especificamente na transformação de Sufiya Zinobia, introduzem a possibilidade imaginativa do sentimento de vergonha gerar raiva e amor-próprio ao invés de embaraço e honra familiar. Segundo o autor/narrador de Shame, versão ficcional do próprio Rushdie, Sufiya nasceu do impacto causado por três fatos distintos: pela notícia do assassinato de uma jovem, morta pelo próprio pai, paquistanês, por ter-se relacionado sexualmente com um jovem branco; pelo espancamento de uma jovem asiática por adolescentes brancos no metrô e pela notícia da morte de um jovem, que morrera carbonizado em um episódio de combustão espontânea.

Jenny Sharpe (2004:4) argumenta que Sufiya representa uma resposta alternativa de todas as mulheres vítimas da violência. O que há de excepcional na personagem, segundo o seu ponto de vista, é o fato de ela ser sensível à vergonha que outros deveriam sentir. Ao colocar em xeque os princípios de izzat e sharam, Rushdie mostra que eles são tendenciosos e parciais, uma vez que na sociedade mulçumana o homem pode ter amantes e abusar fisicamente da esposa sem que isso afete a sua “honra”. A besta que habita o corpo de Sufiya surge sempre que o sentimento de vergonha, seu ou de outros, se torna perceptível. Assim é que ela arranca a cabeça de toda a criação de perus da viúva Aurangzeb, quando percebe que a condescendência de seu pai em relação a ela devia-se a um antigo desejo sexual, que trazia humilhação à sua mãe; bem como tenta matar Talvar Ulhaq, que, no dia do casamento da irmã, para humilhação de toda a família, é apresentado como o noivo, no lugar daquele cujo nome estava nos proclamas. Do mesmo modo, ao sentir no corpo os apelos da carne e perceber que seu marido, ao invés de cumprir seu papel com ela, tornara-se amante da  sua aia, Sufiya sai pelas ruas e deixa-se violar por quatro rapazes, cujos corpos sem cabeça são encontrados em um lixão. Após tentar matar o marido, ela é mantida sob sedação. Um dia, ela foge e, em alguns anos, a lenda de uma pantera branca começa a se espalhar: rastros da violência que surgiu do sentimento de vergonha. O encontro final entre Omar e Sufiya é inevitável, assim como é inevitável que ele morra pelas mãos dela. A força imensurável que há dentro dela já não pode ser contida pelos frágeis limites de seu corpo e, ao fim do romance, ela explode em combustão espontânea.

As demais personagens femininas de relevância, Good News Hyder, Rani Harappa e Arjumand Harappa, são retratadas como vítimas do sistema patriarcal. A primeira, após desistir de um casamento arranjado a fim de casar-se com o homem a quem realmente amava, descobre-se uma máquina de reprodução, dando luz a gêmeos em progressão aritmética, em um total de vinte e sete filhos em cinco anos. Tendo sabido que o marido, dotado do dom da clarividência, a tinha escolhido pela sua capacidade de gerar filhos, sucumbe ao desespero e se mata, contrariando as suas próprias palavras: “Casamento é poder. É liberdade. Você deixa de ser filha de alguém para ser mãe de alguém” (p.161).

Rani Harappa, embora casada com um milionário que se torna Primeiro Ministro, logo percebe que a fama de playboy do marido é verdadeira. Após o nascimento de Arjumand, sua única filha, Harappa toma por amante a esposa do Marechal Aurangzeb, enviando a esposa para uma propriedade da família onde ela possa ficar distante dos acontecimentos. Rani, segundo Goonetilleke (1998: 63) não pode ser vista como vítima, pois personifica a resistência passiva, agindo até certo ponto como juiz de seu marido, ação essa simbolicamente exemplificada pelos dezoito xales que ela borda, denominando-os “A falta de vergonha de Iskander O Grande”. Ao assinar os bordados com seu nome de solteira, ela não busca retornar ao passado, mas reafirma o fato de que não apóia os atos do marido. Embora os xales não exerçam nenhuma função no curso dos acontecimentos, ela procura, através deles, alertar a filha com respeito à adoração que esta desenvolve pelo pai. Arjumand, personagem que tem em Benazir Bhutto a sua fonte de inspiração, não só idolatra o pai, como também renega a sua feminilidade em prol de suas ambições políticas. Para ela, o “corpo de mulher (...) não traz nada além de bebês, apertões e vergonha”(p.107).

 

      5. A representação da mulher em O Deus das Pequenas Coisas     

      O romance de Arundhati Roy gira em torno de uma fatalidade que modifica radicalmente a vida de toda uma família de indianos cristãos. A história é narrada em uma seqüência desordenada, intercalando o passado e o presente das personagens, e, desde o início, as situações apresentadas na obra são reveladas ao leitor. Os gêmeos fraternos Estha e Rahel têm uma ligação emocional tão forte que suas identidades parecem ter sido fundidas, assim como os gêmeos siameses o são fisicamente. Eles vivem com sua mãe, Ammu, uma cristã-síria, que, após divorciar-se do marido hindu, fora obrigada a retornar à casa de sua família, que tinha uma fábrica de picles.  A vida com seus familiares, sua avó, Mammachi, seu tio, Chacko, e sua tia-avó, Baby Kochamma, não é fácil. São vigiados por Baby, que não gosta das crianças e não faz o menor esforço para disfarçar o seu desagrado. Ela os vê como híbridos, com quem um cristão-sírio jamais se casaria, e faz questão de que percebam que vivem de favor em Ayemenem. Mas, apesar de tudo, eles conseguem ser felizes ao seu modo. No entanto, a sua rotina é bruscamente alterada pela chegada de uma prima de nove anos, Sophie Mol, que morre afogada durante um passeio de barco. Paralelamente, sua mãe, Ammu, se envolve com Velutha, um membro da casta dos intocáveis, que acaba por ser assassinado pela polícia local, após uma acusação infundada de que estaria envolvido na morte de Sophie.

O romance de Roy é povoado por mulheres marcadas pelo fardo do seu sexo em uma sociedade patriarcal. Algumas o aceitam como mal necessário, assim como o fazem Mammachi e Baby Kochamma, e a que luta contra seu destino, Ammu, sucumbe.

Mammachi, a matriarca da família, é uma musicista viúva, quase cega, que durante muito tempo sofrera abusos físicos por parte do marido, entomologista famoso, anglófilo dos pés à cabeça e considerado um cavalheiro por toda a sociedade local, exceto a mulher e os filhos, aos quais maltratava sistematicamente. Quando o marido se aposentara, ela passara a fazer picles comercialmente, sendo bem sucedida. A aposentadoria e os dezessete anos de diferença de idade entre marido e mulher, começaram a incomodar Pappachi, o marido, gerando surras diárias com um vaso de latão, que só cessaram quando, em uma das visitas à casa paterna vindo de Oxford, Chacko, seu filho, surpreendeu a agressão e proibiu o pai de fazer aquilo novamente, torcendo-lhe o braço atrás das costas. Pappachi não a espancou mais, mas também nunca mais lhe dirigiu a palavra até o dia de sua morte.

Baby Kochamma, a tia solteirona de Ammu, é retratada como uma mulher amarga que, aos dezoito anos, apaixonara-se por um monge irlandês a serviço na Índia, Padre Mulligan, chegando, até mesmo, a converter-se ao catolicismo no intuito de despertar-lhe a atenção. Muito embora tenha sido igualmente afetado pelo amor da jovem, ele retorna para Madras. Após uma breve passagem por um convento e um curso de paisagismo na América, Baby retorna a casa paterna, onde permanece amargando a sua solidão e tem ressentimentos de Ammu porque vê-la “lutando contra um destino que ela, Baby Kochamma, sentia ter aceitado com graça. O destino desgraçado da mulher sem homem” (p. 55).

Ammu, que, após terminar a escola, teve de desistir de ir para a universidade, quase enlouquecera nas mãos de um pai mal-humorado e de uma mãe amarga e sofrida. Um dia, conseguiu convencer o pai de deixá-la ir passar o verão com uma tia que morava em Calcutá. Lá, conheceu o pai de Estha e Rahel, um jovem de vinte e cinco anos, que trabalhava como gerente assistente em uma fazenda de chá. Após cinco dias, ele lhe propôs casamento e ela aceitou. Com o tempo descobriu que o marido era um alcoólatra preguiçoso. A beleza de Ammu, que a essa altura já era mãe dos gêmeos, levara o gerente inglês da fazenda em que seu marido trabalhava a fazer-lhe uma proposta indecorosa: retirar-se para uma clínica de tratamento do alcoolismo e deixar que Ammu se tornasse sua amante. Fora o bastante para que ela o deixasse e retornasse a casa do pai, que, obviamente, não acreditara nela, pois não acreditava que um inglês, qualquer inglês, pudesse cobiçar a mulher de outro homem.” O retorno para tudo o aquilo de que tinha fugido, e com duas crianças à tiracolo, encarregara-se de desfazer todos os sonhos que pudesse ter tido um dia. Ela é uma mulher frustrada, incapaz de aceitar o seu “espaço social” e o estigma de mulher divorciada. O modo pelo qual é tratada na casa de seus próprios pais é uma sentença à solidão, a um mundo periférico, do qual esperam que ela seja uma habitante silenciosa. Quando, porém, opta por um amor igualmente periférico, traz para si e Velutha um destino trágico.

Mammachi havia dito a Estha e Rahel que quando era criança o que se esperava dos paravans (intocáveis, responsáveis pela coleta de seiva de palmeira) era que eles engatinhassem para trás com uma vassoura, apagando as próprias pegadas, para que outros não ficassem impuros ao pisar nelas. Ela relatara isso aos netos como se os tempos fossem outros, como se o tempo de andar para trás não mais existisse. Velutha era, há anos, o marceneiro da família e também trabalhava na fábrica de picles. O conceito de igualdade de Mammachi era pautado em pequenas concessões: ela “pagava a Velutha menos do que pagaria a um carpinteiro tocável, porém mais do que pagaria a um paravan”(p.86).

Quando Estha julga ter visto Velutha em uma passeata do Partido Marxista, Baby começa a implicar com ele, dizendo que ele poderia insuflar rebeldias entre os empregados com idéias de um novo sindicato trabalhista, o que, sem dúvida alguma, iria ajudar o camarada Pillai a avançar rumo à Assembléia Legislativa. Seu sobrinho-neto, Chacko, tinha por hábito chamar os funcionários de “camarada”, mais para fazer charme para as funcionárias do que por convicções políticas. No entanto, a presença de um funcionário do Partido na fábrica da família poderia criar problemas. Ela não sabia, no entanto, que, para o camarada Pillai, a filiação de um intocável ao partido também constituía um problema.

No dia em que Chacko vai a Cochin com a ex-mulher para confirmar a passagem de retorno dela e da filha para a Inglaterra, o pai de Velutha, ainda tomado pelo espírito de gratidão que sempre o ligara à família, denuncia o amor secreto entre Velutha e Ammu, despertando a ira de Mammachi e a sede de vingança de Baby Kochamma. A tolerância que Mammachi demonstrava ter com as “necessidades masculinas” do filho transforma-se em combustível para a sua incontrolável fúria contra a filha. Com a ajuda de Baby, ela tranca Ammu no quarto, a espera de que Chacko chegue e decida o que fazer.  Nesse ínterim, Velutha é chamado a casa de Mammachi e, sem saber de nada, é agredido verbalmente por ela e demitido. Ao buscar apoio no camarada Pillai, Velutha descobre a hipocrisia do discurso do outro, que lhe nega a ajuda pretendida.

Sem que a família soubesse, Estha e Rahel haviam levado Sophie Mol para um passeio de barco, que virou, resultando na morte da menina. Obcecada pela idéia de preservar o bom nome da família, e castigar Ammu e Velutha pela concretização de algo que a vida lhe havia negado, Baby vai à delegacia e inventa uma história: Velutha teria sido dispensado da fábrica por ter tentado violentar sua sobrinha e agora uma criança estava morta e duas estavam desaparecidas. Os acontecimentos que se seguem culminam na prisão de Velutha e na sua morte por espancamento. Baby ainda leva as crianças à prisão, sob ameaça, para que apontem Velutha como culpado, o que Estha acaba por fazer. Mais tarde, Ammu ainda tenta contar a verdade, mas é contida pelo próprio delegado. Expulsa de casa pela família, ela é obrigada a devolver o filho ao pai, deixando Rahel com a avó, para procurar emprego em outra cidade. Após uma sucessão de desventuras, ela morre de asma, aos 31 anos, em um quarto de uma hospedaria miserável.

No capítulo inicial Rahel, agora mulher, formada e divorciada, retorna a casa da avó, vinte e três anos após os acontecimentos que são relatados no romance, para rever o irmão, que havia sido “des-devolvido”. Vem no intuito de preencher o vazio deixado pelo irmão; aquele irmão que se tornara silencioso com o tempo e que ocupava muito pouco espaço no mundo. O peso da culpa pela morte de Velutha, a falta de carinho e a morte de Ammu, que fora mãe e pai e os amara dobrado, foram retirando-no da realidade. Rahel descobre que já não pensa em si e no irmão como “nós”. O pronome foi substituído por “eles”. A simbiose foi desfeita em algum ponto do passado. Não são mais crianças, têm uma idade “morrível” viável. A linguagem que marca a ótica infantil predomina na narrativa com neologismos compatíveis com a infância, o que torna compreensível determinadas falhas que o romance parece ter, como, por exemplo, o amor súbito de Ammu por Velutha.

Arundhati Roy escapa de uma visão maniqueísta, ao retratar personagens cujas ações injustas e violentas, embora não justificadas, são explicadas pela história pessoal de cada uma. A autora aborda com lucidez a opressão feminina, a injustiça da divisão social em castas, a banalização da cultura indiana em função do turismo e um certo complexo de inferioridade em relação à Inglaterra. Esse sentimento de subalternidade “pós-descolonização” é explicável na voz de Chacko, ao dizer aos sobrinhos que: “eram uma família de anglófilos. Voltados para a direção errada; presos do lado de fora da própria História e incapaz de retornar sobre os próprios passos porque as pegadas tinham sido apagadas” (p.61).

Conclusão

Salman Rushdie e Arundhati Roy tratam basicamente dos mesmos temas: a releitura da história, a opressão feminina e as marcas deixadas pelo colonialismo. No entanto, eles o fazem de modo diverso. A ótica de Rushdie está condicionada à focalização do imigrante, do exilado, cujo distanciamento físico permite a elaboração de um contexto que é fruto da memória. Muito embora os costumes e a tradição estejam presentes, a recorrência ao realismo mágico contribui para a compreensão do texto como uma alegoria que traz em seu bojo a crítica à história política. A representação da mulher está subordinada aos conceitos que regem o comportamento de uma sociedade patriarcal e as suas histórias pessoais reproduzem metaforicamente a história política que se desenrola dentro e fora do universo ficcional.

Roy, por sua vez, aborda as questões políticas e sociais que ainda afligem o povo indiano na perspectiva de quem as vivencia. Para tanto, ordena o universo ficcional segundo o olhar de uma criança, que é ativado pela memória. O contexto que ela retrata, ao contrário do que ocorre no texto de Rushdie, é verossímil, humanizado e contundente no relato do sofrimento e frustrações de suas personagens femininas, fazendo com que o leitor realmente creia que tudo pode acontecer em um mundo regido pelo deus das pequenas coisas.

 

Referências bibliográficas

 

BHABHA, Homi K. The Third Space. Interview with Jonathan Rutherford. Identity: Community, Culture, Difference. Ed. Jonathan Rutherford. London: Lawrence & Wishart, 1990. 207-21.

GOONETILLEKE, D. C. R. A . Salman Rushdie. London, New York: Macmillan, 1988.

HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

ROY, Arundhati. O deus das pequenas coisas. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2002 [1997].

RUSHDIE, Salman. Shame: a novel. New York: Picador USA, 2000 [1983].

_ _ _ _ _  _.Imaginary Homelands. Essays and criticism 1981-1991.Londres: Granta Books, 1991.

Referências bibliográficas: Publicações acessadas pela Internet

 

CHAUDHURI, Una.  Excerpts from a Conversation with Salman Rushdie. In: Imaginative Maps. Volume II, No. 1.New York: Turnstyle Press, 1990. Disponível  em : http://www.subir.com/rushdie/uc_maps.html

SHARPE, Jenny. The limits of what is possible: reimagining sharam in Salman Rushdie’s Shame.

         Disponível em http:// social.chass.ncsu.edu/jouvert/vlil/sharpe.htm

RAJA, Masood. Salman Rushdie: a Study in Postcolonial Representation. Disponível em: http://masodraja.com/thesis.html

 

 

 

 



[1] Bhabha, H. […] if, as I was saying, the act of cultural translation (both as representation and as reproduction) denies the essentialism of a prior given originary culture, then we see that all forms of culture are continually in a process of hybridity. But for me the importance of hybridity is not to be able to trace two original moments from which the third emerges, rather hybridity to me is the “third space” which enables other positions to emerge. Minha tradução.

Apud Rutherford, J. (1990). The Third Space: Interview with Homi Bhabha. Identity, Community, Culutre, Difference. J. Rutherford. London, Lawrence and Wishart:207-221, p.211.

[2] Masood Raja, em sua dissertação de mestrado “Salman Rushdie: a Study in Postcolonial Representation”, aborda, entre outros temas, a divergência crítica sobre as personagens femininas de Rushdie. Disponível em: http://masodraja.com/thesis.html

[3] “Atrás das cortina”

[4] “This is a novel about Sufiya Zinobia (...) Or perhaps it would be more accurate, if also more opaque, to say that Sufiya Zinobia is about this novel”.

Sincronía Summer 2008