O papel da mulher em Memorial do convento, de José Saramago.
Elizabete Costa Malheiros
UNIGRANRIO
Bolsista de Iniciação Científica da FAPERJ
O romance Memorial do Convento, de José Saramago, representa uma investida no campo da narrativa histórica. A obra percorre um período de aproximadamente 30 anos na história de Portugal à época da Inquisição. O autor critica Portugal que submetia o povo à exploração e à miséria, apesar da riqueza do país. Suas personagens estão divididas entre a sofisticação da Corte e a simplicidade da vida popular. Nesses dois grupos distintos, José Saramago trata as personagens femininas de forma especial, mostrando seus diferentes comportamentos.
Através da personagem chamada Blimunda, e por meio da sua capacidade extraordinária de ver o que realmente há no mundo, o narrador pode olhar dentro da história do século XVIII e enxergar verdadeiramente os deslizes religiosos e morais, mostrando a corrupção da Igreja, os excessos da nobreza, bem como o investimento caríssimo de D. João V na construção do Convento de Mafra, a ação da Inquisição, instalada em Portugal para atender os interesses da Coroa visando o enriquecimento, através dos bens tomados dos judeus, e a imagem verdadeira de uma sociedade que escondia suas fragilidades: sujeira, doenças e diferenças sociais.
A personagem D. Maria Ana é apresentada como uma rainha triste e insatisfeita, vivendo um casamento de aparência, onde as regras e formalidades se estendem até o leito conjugal, fazendo do ato de amor com el-rei um encontro frio, programado e indiferente, que tem como maior objetivo o milagre da fecundação, o que levou el-rei a fazer uma promessa de levantar um convento em Mafra, caso a concepção ocorresse.
Dona Maria Ana estende ao rei a mãozinha suada e fria, que mesmo
tendo aquecido debaixo do cobertor logo arrefece ao ar gélido do quarto,
e el-rei, que já cumpriu o seu dever, e tudo espera do convencimento e criativo
esforço com que o cumpriu, beija-lhe como a rainha e futura mãe, se não
presumiu demasiado frei Antônio de São José. MC, 14
Essa carência deixa à rainha somente a possibilidade de realizar seus desejos através dos sonhos noturnos que tem com o cunhado. E é também por essas fraquezas e por se sentir culpada, que ela procura, através da oração constante, se redimir.
Porém, Vossa Majestade sonha comigo quase todas as noites, que eu bem
no sei, É verdade que sonho, são fraquezas de mulher guardadas no meu
coração. MC, 102
E, assim, D. Maria Ana vive pressionada pela responsabilidade de dar herdeiros ao marido, já que a culpa de tal ainda não ter acontecido é dela, pois esterilidade como o narrador lembra, ironicamente, não é problema dos homens, aliás o que se vê na Corte é um número considerável de bastardos, o que prova a virilidade do rei. Nesse ambiente onde as proibições e repressões ditadas pela Igreja e pelo Estado interferem diretamente no comportamento, à ela é proibida qualquer atitude que fuja aos padrões do modelo de família exigidos pela sociedade. Em meio ao luxo e a riqueza, D. Maria Ana vai acumulando dentro de si uma sensualidade que não pode explorar, já que seus encontros sexuais com el-rei representam unicamente o cumprimento do dever conjugal. À ela cabe a passividade diante da vida.
Mas à outra personagem chamada Blimunda, José Saramago dá características fortes, sensualidade e inteligência. Através de Blimunda, o autor trata das dúvidas e inquietações do ser humano em relação à morte, ao amor, ao pecado e à existência de Deus. Ela representa a vida do povo. Blimunda é verdadeira, sem subterfúgios, mulher de poderes incomuns, e cuja mãe, Sebastiana Maria de Jesus, por ter poderes semelhantes, é vista como feiticeira e por isso é banida para Angola. A personagem Blimunda vive de forma livre em um mundo onde não há regras e formalidades para escravizá-la. Mundo diferente daquele vivido por D. Maria Ana, que recebe de seu confessor ensinamentos para resignar-se com as traições do marido, inclusive aquelas cometidas com as freiras nos mosteiros, a quem ele emprenha uma após outra.
Blimunda é o que é. Apesar da vida simples e pobre, à ela é dado o direito ao amor, à liberdade, à plenitude.
O encontro de Blimunda com Baltasar Sete-Sóis, um soldado que perdeu a mão esquerda na guerra de sucessão pelo trono espanhol, acontece em um espetáculo da Inquisição, onde a mãe de Blimunda está sendo condenada a oito anos de degredo no reino de Angola. A sensibilidade à flor da pele leva essas duas mulheres a se comunicarem mentalmente, já que não podem se aproximar uma da outra. As visões de Sebastiana indicam que aquele homem maneta que vê, seria companheiro de sua filha, por isso inspira Blimunda a perguntar ao desconhecido "Que nome é o seu". Blimunda obedece à ordem mental de sua mãe que contribui, dessa forma, para que uma relação de união e paixão comece naquele momento.
Por que foi que perguntaste o meu nome, e Blimunda respondeu,
Porque minha mãe o quis saber e queria que eu o soubesse,
Como sabes, se com ela não pudeste falar, Sei que sei, não sei como
Sei, não faças perguntas a que não posso responder, faze como fizeste,
Vieste e não perguntaste porquê. MC, 49
A profundidade e a expressividade do olhar de Blimunda perturbam e encantam Baltasar. A atração entre os dois é inevitável.
Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, está calado, apenas olha fixamente Blimunda,
e de cada vez que ela o olha a ele sente um aperto na boca do estômago,
porque olhos como estes nunca se viram, claros de cinzento,
ou verde, ou azul, que com a luz de fora variam ou o pensamento de dentro,
e às vezes tornam-se negros noturnos ou brancos brilhantes como lasca
de carvão de pedra. MC, 48
(...) mas agora só tem olhos para os olhos de Blimunda,
ou para o corpo dela, que é alto e delgado como a inglesa que
acordado sonhou no preciso dia em que desembarcou em Lisboa. MC, 48
Blimunda, com seu olhar de mistério, envolve Baltasar, que, logo no início, percebe estar diante de uma mulher muito especial, alguém que pode ver muito além do que os olhos podem alcançar.
Olhaste-me por dentro, Juro que nunca te olharei por dentro,
Juras que não o farás e já o fizeste. MC, 49
Blimunda se permite estar com Baltasar sem perguntas, sem porquês. Sua pureza é entregue a ele, por amor, da forma mais simples e apaixonada, sem compromisso, sem culpa. Sua capacidade de ver por dentro, deixa-a certa de que, com aquele homem, dividirá uma vida.
Apesar de sentir-se encantado por ela, Baltasar na sua simplicidade não consegue entendê-la. A magia que envolve Blimunda deixa-o curioso. Uma mulher que come pão ao acordar, antes de abrir os olhos, por quê? Ele procura respostas em alguém inteligente e estudioso, como o Padre Bartolomeu de Gusmão, conhecido como " o Voador ". Mas este apenas declara:
Só te direi que se trata de um grande mistério,
Voar é uma simples coisa comparado com Blimunda. MC, 56
A cumplicidade e fidelidade entre Blimunda e Baltasar faz com que ela o confesse: " Eu posso olhar por dentro das pessoas ". MC, 69. Ela que só tem tais poderes se estiver em jejum, por isso come antes de abrir os olhos. Blimunda, numa atitude amorosa e protetora poupa Baltasar e a ela mesma quando promete que nunca o verá por dentro.
Blimunda é inteligente e conhece as diferenças entre ela e a mãe no tocante às visões que ambas possuem.
O meu dom não é heresia, nem é feitiçaria, os meus olhos são naturais. MC, 69
Diferentemente de Sebastiana, que tem poderes sobrenaturais, Blimunda não vê o futuro, ela só vê o que está no mundo, dentro dos corpos, no interior da terra, por baixo da pele. Em sua sabedoria, Blimunda reconhece que não vê a alma, talvez porque esta não esteja dentro do corpo. Diante da incredulidade de Baltasar, os poderes de Blimunda a fazem ver: um filho na barriga de uma mulher, cujo cordão umbilical está enrolado no pescoço, uma pessoa com o estômago vazio, um frade que leva nas tripas uma bicha solitária, uma moeda de prata, a qual é reconhecida por Baltasar como moeda de ouro, ao fazer um buraco no lugar indicado por ela. Na sua simplicidade, ela declara que confunde ouro com prata.
Blimunda não se deixa envaidecer pelos poderes que possui, pelo contrário, prefere a naturalidade da vida, prefere ter o seu homem sem olhá-lo por dentro.
Baltasar, leva-me para casa, dá-me de comer, e deita-te comigo,
Porque aqui adiante de ti não te posso ver, e eu não te quero ver por
dentro, só quero olhar para ti, cara escura e barbada, olhos
cansados, boca que é tão triste, mesmo quando estás ao meu
lado deitado e me queres(...) MC. 72
O romance Memorial do Convento nos faz analisar o quanto a capacidade de ver verdadeiramente as coisas estão distantes de nós, porque na verdade, só vemos o que desejamos. Blimunda era especial. Ela podia ver o que as pessoas comuns não podem: a essência, a verdade das coisas. E isso consiste em ver também o que é desagradável, o que é sujo, triste, o que todos nós preferimos não ver.
À ela não importavam os conceitos preestabelecidos, os dogmas, os ensinamentos recebidos. Ela questiona os santos, não consegue conceber santidade em pessoas comuns. Fica surpresa quando, em jejum, não consegue ver Deus na hóstia. O que vê é uma nuvem fechada, o mesmo que vê dentro dos seres humanos. Não entende essa religião cristã que prega a divindade e a glória de Deus através de símbolos como a hóstia e as estátuas dos santos.
Blimunda tem convicções sobre o pecado, a vida e a morte, que são diferentes do pensamento da maioria. Ela vê além, muito além das pobres crenças restritas que são praticadas pelos outros. Blimunda e Baltasar cometem pecados de luxúria, são concubinos, não sacramentados na Igreja, por vontade própria. Preferiram outro sacramento: a cruz e o sinal feito por ela com o sangue da virgindade quando estavam no primeiro momento de amor. Uma espécie de ritual de sangue, onde os dois se casam, desafiando as normas da religião. E, com firmeza, ela diz:
Não tenho pecados a confessar. MC, 80
A atitude de transgredir os valores religiosos, leva o autor a envolver Blimunda e Baltasar no projeto de construção da passarola, um sonho pessoal do Padre Bartolomeu de Gusmão, chamado de O Voador. O Padre, com a autorização e ajuda do rei, ocupava-se na confecção de uma máquina que pudesse voar.
Para convencer Baltasar a ajudá-lo, já que este se considerava incapaz, em conseqüência da deficiência física: a falta da mão esquerda, o Padre blasfemando contra os princípios religiosos, declara a Baltasar, deixando-o assustado, que Deus também é maneta e foi capaz de criar o universo.
Que está a dizer, Padre Bartolomeu, onde é que se escreveu
Que Deus é maneta. Ninguém escreveu: não está escrito,
só eu digo que Deus não tem a mão esquerda, porque é á
sua direita, que se sentam os eleitos, não se fala nunca da mão
esquerda de Deus. MC, 59
Saramago transforma o Padre Bartolomeu em um grande "pecador" aos olhos do século XVIII, pelo orgulho e ambição ao desejar levantar uma máquina aos céus, onde apenas Cristo, a Virgem Maria e outros santos subiram. Que seria do Padre se as autoridades da Igreja o encontrassem na companhia de um maneta e de uma feiticeira construindo uma passarola?
Blimunda toma parte na confecção da máquina acompanhando Baltasar. Ela inspeciona a obra, quando está em jejum, enxergando defeitos, rachaduras, coisas que os outros não podem ver.
Este ferro não serve, tem uma racha por dentro. Como é que sabes,
Foi Blimunda que viu, o Padre virou-se para ela, sorriu, olhou um e
olhou outro, e declarou, Tu és Sete-Sóis porque vês, às claras,
tu serás Sete-Luas porque vês às escuras. MC, 81
Mas a grande missão de Blimunda no projeto da construção da passarola é usar o poder que possui, a pedido do Padre Bartolomeu, para recolher as vontades que se separam das pessoas que estão à beira da morte, não deixá-las se perderem ou subirem às estrelas. Era preciso guardá-las, para que depois de armazenadas em um frasco, pudessem possibilitar a subida da máquina aos céus. A capacidade de Blimunda de ver por dentro das pessoas tem papel importante na história, propiciando a concretização do sonho de voar do Padre Bartolomeu.
Mas o principal objetivo do narrador é desconstruir os conceitos religiosos no que se refere à existência do espírito, negando que este suba aos céus, após a morte do corpo, já que Blimunda era capaz de segurá-lo na terra.
A certeza de Blimunda de que poderia fazê-lo, estende-se ao momento triste, no final do romance, quando após nove anos de incansável procura por Baltasar, que havia desaparecido, ela o encontra em circunstâncias trágicas, sob o poder da Igreja. Também nesse momento, contrariando o que havia prometido anteriormente, de não vê-lo por dentro, ela vê uma nuvem negra dentro de Baltasar e não permite que a vontade dele suba aos céus. Ela o chama para si.
A personagem Blimunda é usada pelo autor para mostrar suas incredulidades em relação ao clero, à nobreza, aos falsos conceitos morais. E é usando de ironia que ele revê o passado de Portugal, chamando a atenção para esses fatos marcantes.
Blimunda descobre novos valores que ultrapassam os limites da época, através de questionamentos e incertezas que possui. Ela está à frente do seu tempo. Isso possibilita ao autor, falar, através da personagem, de tudo que o incomoda. Ele dá força, autoridade e posição de destaque às pessoas comuns, que não tinham voz, que eram oprimidas. Ele permite que o povo tenha poder quando dá à Blimunda a capacidade de recolher as vontades dos homens.
E, o que é mais importante, o romance nos leva à reflexão, através de Blimunda, da importância de ver o mundo de forma verdadeira, sem máscaras, sem hipocrisia, e isso só é permitido a pessoas sensíveis, àquelas que entendem que nem sempre ter olhos é saber ver. É, portanto, pertinente recordar que " Usa cada qual os olhos que tem para ver o que pode ou lhe
consentem, ou apenas parte pequena do que desejaria." MC, 75
E, assim, revendo o passado com o olhar crítico da atualidade, Saramago nos convida, através do romance, a questionar o sentido das coisas, não nos submetendo passivamente aos modelos de comportamentos sociais que nos são impostos. É preciso vencer a cegueira e viver intensamente.
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