Cumplicidade e entendimento do
produto: Algumas observações a partir de Foucault e Magritte
Alessandro Valério Santos
Jorge Lucio de Campos
Ser
um artista hoje significa um meio de questionar a natureza da Arte. Se alguém questiona a
natureza da pintura, não pode estar questionando a natureza da Arte. Se um artista aceita
a pintura (ou escultura), está aceitando a tradição que o acompanha. Isto se deve ao
fato de que a palavra Arte é geral, e a palavra pintura é
específica. A pintura é um tipo de Arte. Se se fazem pinturas, já está se aceitando (e
não questionando) a natureza da Arte. Assim, está se aceitando que a natureza da Arte é
a tradição européia de uma dicotomia pintura-escultura
J.
Kosuth
Na
historia nos preocupamos com o que passou e com o que é; na filosofia, por
sua vez, nos preocupamos não com o que pertence
exclusivamente ao passado ou
mesmo ao futuro, mas com o que é, tanto agora como
eternamente, ou seja, a razão
G. W. F.
Hegel
A
verdade sobre si mesmo, não era algo dado, algo que
temos de desvendar - é algo que devemos criar
sozinhos
F. W. Nietzsche
1
No ensaio Ceci nest pas une pipe, Michel Foucault
(1926-84) oferece uma instigante reflexão sobre os códigos de representação vigentes
na modernidade a partir da análise de dois quadros de René Magritte (1898-1967) que têm
como tema principal o cachimbo.
Considerado
por alguns estudiosos uma espécie de novo Immanuel Kant (1724-1804), Foucault - que nunca
foi (nem pretendeu ser) um pensador afeito à tradição - rejeitou e absorveu as idéias
e os pontos de vista de filósofos como Georg W. F. Hegel (1770-1831), Martin Heidegger
(1889-1976), Jean-Paul Sartre (1905-80), Karl Marx (1818-83) e Friedrich W. Nietzsche
(1844-1900).
Rompendo
com Hegel, cuja filosofia insistia na coerência e no sentido da história, ele progrediu
para Heidegger, ao vera a situação do homem, em grande parte, determinada por fatores
fora do alcance da razão. A partir deste último, aderiu, por algum tempo, ao
existencialismo de Sartre que, por sua vez, veio a ser muito influenciado por Heidegger. O
existencialismo sartriano era, basicamente, subjetivo e acreditava muito pouco da
precessão ontológica da essência. Porém, de todos, o que mais influenciou sua forma de
pensar foi Nietzsche
Após ler
os escritos deste, Foucault - que lamentava sentir o seu pensamento ainda preso - buscou
criar os seus próprios conceitos. Na ocasião, publicou Folie
et déraison: Histoire de la folie à l'âge
classique, no qual demonstrou como
a nossa idéia de loucura passara por decisivas descontinuidades e contingências. Ao ser
publicado em 1961, este livro consolidou como um dos líderes intelectuais de Paris.
Em 1966
concluiu Les mots et les choses: Une archéologie des sciences humaines,[1]
obra que levaria as suas idéias a uma posição de destaque em todo o mundo
ocidental. Seu objetivo principal era investigar a maneira pela qual o próprio conceito
de humanidade havia sido tratado até se tornar um estratégico objeto de nosso saber.
Foi em
1973 que Foucault publicou o ensaio Ceci nest
pas une pipe no qual discorria sobre a obra pictórica de Magritte quase sempre
voltada - ao menos, aparentemente - para a representação de objetos da realidade
cotidiana como guarda-chuvas, chapéus, balaústres, sapatos, nuvens, etc.
Mas, por
outro lado, o belga, com alguma freqüência, mudava tais objetos de contexto,
associando-os com outros com os quais, a princípio, não teriam qualquer ligação.
Pode-se dizer que, muito em função desse hábito, suas telas possuíam uma parcela de
estranheza, levando o espectador a se perguntar, a todo momento, sobre o seu sentido. Só
após um certo convívio com elas é que este percebia que o propósito de Magritte nunca
fora, na verdade, representar a realidade, e
sim, prioritariamente, revelar de seus muitos
mistérios.
2
Magritte
tornou-se um dos artistas mais famosos do século passado. Seu pai era alfaiate e um homem
de negócios, e sua mãe uma modista de chapéus. Ele tinha apenas quatorze anos quando
esta cometeu suicídio, fato que o marcaria profundamente. Começou a pintar em 1915, aos
dezessete anos, e estudou na Academia de Belas Artes de Bruxelas, entre 1916 e 1918. Em
1922 casou-se com Georgette Berger com quem conviveu durante toda a vida. Trabalhou como
designer gráfico numa fábrica de papel de parede, onde criou diversos cartazes. Entre
suas primeiros quadros surrealistas estão Le
jockey perdu (O jockey perdido) e Lassassin
ménacé (O assassino ameaçado), pintados, respectivamente, em 1926 e
1927.
1.
René Magritte, Le jockey perdu (1926).
Em 1927,
expôs sessenta e um pinturas na galeria Le Centaure, onde conheceu Louis Scutenaire de
quem tornaria amigo. Mudou-se para Paris, onde conviveu com muitos surrealistas, entre
eles, André Breton (1896-1966), Louis Aragon (1897-1982) e Philippe Soupault (1897-1990).
Em 1930 se desentendeu com Breton e, em seguida ao incidente, saiu, definitivamente,
daquela cidade. Em 1936 expôs nos Estados Unidos, onde teve inicio o sucesso de suas
obras. De 1943 a 1947, adotou uma técnica de pintura diferente, semelhante ao
impressionismo de Pierre-Auguste Renoir (1841-1919). Dois anos antes de sua morte (1967),
o Museu de Arte Moderna de Nova York dedicou-lhe uma importante retrospectiva.
Um dos
quadros mais polêmicos de Magritte foi, sem dúvida, La trahison des images (1928-9) em que a imagem de
um cachimbo aparece acompanhada pela frase Ceci
nest pas une pipe (Isto não é um cachimbo). O problema da
relação entre o objeto e sua representação será abordado e desenvolvido por ele em
vários outros trabalhos. O discurso de Foucault sobre suas telas, ao analisar algumas
características da língua e dos objetos, geralmente ignoradas na vida cotidiana,
privilegia as novas relações que se pode criar entre as palavras e as imagens. Desta
forma, uma palavra pode tomar o lugar de um objeto na realidade, ou uma imagem pode tomar
o lugar de uma palavra numa proposição. Há muitos exemplos dessas substituições na
obra magrittiana.
As
pinturas La trahison des images e Les deux mystères, analisadas
prioritariamente por Foucault, são um exemplo de como o texto, ao mesmo tempo que pode
substituir a imagem, pode mudar o significado dela. Em determinado momento de sua
explanação, ele se detêm na suposta tensão existente entre a imagem e sua legenda. A
que se refere esta frase afinal? Ao aprofundar-se na relação do texto e da imagem, ele
arrisca expor a sua mecânica interna, classificando-a como um caligrama que
pretenderia apagar, ludicamente, as mais velhas oposições de nossa civilização
alfabética: mostrar e nomear; figurar e dizer; reproduzir e articular; imitar e
significar; olhar e ler. Para Foucault, esta qualificação da imagem como um caligrama
passaria por um reconhecimento necessário das relações internas existentes entre seus
componentes concepto-imagéticos.
2.
René Magritte. La trahison des images (1926).
3. René
Magritte. Les deux mystères (1966).
Mais à
frente, lançando mão de esquemas, ele resumirá as relações possíveis entre a imagem
e o texto em três níveis fundamentais de leitura (Texto/Imagem, Imagem/Texto,
Textoimagem/Textoimagem), entendendo-se por leitura a ordenação lógico-visual dos
elementos do quadro com vistas à formação de um sentido.
3
Aspectos
das possibilidades de combinação exploradas por Magritte e analisadas por Foucault
também podem ser vistos, nos dias de hoje, na propaganda e na publicidade. É possível
ver alguns anúncios publicitários em que tanto a imagem substitui o texto quanto o texto
substitui a imagem, assim como outras em que a imagem complementa e mesmo dá sentido ao
texto.
A
logomarca da montadora de automóveis alemã, Volkswagen, é um bom exemplo de fusão de
imagem e texto. Desde os primeiros tempos da Volkswagen,[2] o logo com a letras V e W
juntas dentro de uma "bolacha", foi o símbolo da DAF (Deutsche Arbeitsfront),
um tipo de sindicato da antiga fábrica Volkswagen GmbH.
Já o
logotipo "cruzado" da Volkswagen foi registrado em outubro de 1948 no
Departamento Alemão de Patentes em Munique e, desde então, tem sido usado em diferentes
variantes. Até hoje o seu criador é desconhecido.
4.
Evolução da logomarca da Volkswagen ao
longo de seus sessenta e dois anos de criação.
A atual
versão do logo da Volkswagen é usada desde 2000. Sua aparência tridimensional está em
linha com os mais altos padrões da marca, sem perder a familiaridade, desde então.
A cor azul foi fortemente moldada à identidade da marca Volkswagen. Hoje é
considerada por muitas pessoas como "a cor Volkswagen". Ao lado do cinza
metálico, o azul usado no logo é uma das cores primárias da marca. É reconhecida como
amigável, essencial e inovadora - características com os quais a marca se identifica
estreitamente.
Em toda a
sua publicidade atual, logo abaixo da logo, surge a escrita em alemão Das Auto
(O automóvel). Imagem/Texto.
5.
Logomarca Volkswagen do Brasil.
A
Volkswagen possui um concurso anual no Brasil - do qual participam estudantes de design de
Instituições de Ensino Superior de todo o país que estejam no último ano de curso -
cujo prêmio é o cobiçado estágio de um ano no Estúdio de Design da Montadora em São
Bernardo do Campo em São Paulo. Neste concurso, intitulado Talento Volkswagen Design, surgiu a idéia de
aliar o texto e a imagem.[3]
No
concurso de 2010,[4]
Customize foi o tema que os projetos apresentados buscaram traduzir em
representações gráficas e sketches e uma
comissão julgadora foi composta para escolher aquele que melhor conseguisse aliar a
imagem da empresa ao tema da customização, objetivando a criação de um modelo de
automóvel customizável tanto em cores, como em algumas peças e, até mesmo, no projeto
de um carro completo.
6.
Apresentação de projeto no VRC (Virtual Reality
Center)
da Volkswagen do Brasil.
7. Projeto
de Milton Tanabe para o concurso
Talento
Volkswagen Design.
Referências
Bibliográficas
ARCHER, M. Arte
contemporânea: Uma história concisa.
São Paulo: Martins Fontes, 2001.
CAMPOS, J.
L. Eis dois cachimbos: Roteiro para uma leitura foucaultiana de Magritte. In: Poiésis Estudos de Ciência da Arte
(EdUFF), v. 8, 2005.
FOUCAULT, M.
Isto não é
um cachimbo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
LARICA, N.
J. Design
de automóveis: Arte em função da mobilidade.
Rio
de Janeiro: 2AB/PUC-Rio, 2003.
NORMAN,
D. A. The
design of future things. Basic Books, 2009.
PAQUET,
M. Magritte ou leclipse de lêtre,
Paris: Différence, 1982.
STRATHERN,
P. Foucault
em 90 minutos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar.
TAMBINI, M. O design do
século. São Paulo: Ática, 1999.
Sobre os autores:
Alessandro Valério Santos Aluno do
Programa de Pós-graduação (Mestrado) em Design da Escola
Superior de Desenho Industrial (ESDI) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Jorge Lucio de Campos Doutor e Pós-Doutor em Comunicação e Cultura (História dos Sistemas de Pensamento) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ). Graduado e Mestre em Filosofia (Estética) pela UFRJ. Professor do Programa de Pós-graduação (Mestrado) em Design da ESDI/UERJ.
[1]
Nele
Foucault chamou de episteme o conjunto de pressupostos, preconceitos e tendências
que estruturariam e delimitariam o pensamento de qualquer época acerca de qualquer coisa.
Trata-se de uma palavra grega da qual também se derivou epistemologia a investigação dos
fundamentos em que baseamos nosso conhecimento. Uma determinada episteme tende a
originar uma determinada forma de conhecimento. Foucault chamou tal tendência de
discurso, ou seja, a acumulação de conceitos, práticas, declarações e
crenças produzidos por uma determinada episteme.
[2] Foi registrado em 1938.
[3] A regra é, através de um tema sugerido (texto), o candidato deve criar o automóvel que se adéqüe a este tema (imagem).
[4]
O ganhador em uma das categorias do concurso foi o aluno
Milton Tanabe da UNESP, que apresentou o projeto do automóvel VW Naked, um carro
altamente customizável tanto na parte gráfica quanto na forma física (ilustração 7).