Sincronía

Winter 2010


 

Cumplicidade e entendimento do produto: Algumas observações a partir de Foucault e Magritte

 

Alessandro Valério Santos

 Jorge Lucio de Campos


 

 

“Ser um artista hoje significa um meio de questionar a natureza da Arte. Se alguém questiona a natureza da pintura, não pode estar questionando a natureza da Arte. Se um artista aceita a pintura (ou escultura), está aceitando a tradição que o acompanha. Isto se deve ao fato de que a palavra “Arte” é geral, e a palavra “pintura” é específica. A pintura é um tipo de Arte. Se se fazem pinturas, já está se aceitando (e não questionando) a natureza da Arte. Assim, está se aceitando que a natureza da Arte é a tradição européia de uma dicotomia pintura-escultura”

 

J. Kosuth

 

 

“Na historia nos preocupamos com o que passou e com o que é; na filosofia, por

 sua vez, nos preocupamos não com o que pertence exclusivamente ao passado ou

 mesmo ao futuro, mas com o que é, tanto agora como eternamente, ou seja, a razão”

 

G. W. F. Hegel

 

 

“A verdade sobre si mesmo, não era algo dado, algo que

 temos de desvendar - é algo que devemos criar sozinhos”

 

F. W. Nietzsche


 

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No ensaio Ceci n’est pas une pipe, Michel Foucault (1926-84) oferece uma instigante reflexão sobre os códigos de representação vigentes na modernidade a partir da análise de dois quadros de René Magritte (1898-1967) que têm como tema principal o cachimbo.

Considerado por alguns estudiosos uma espécie de novo Immanuel Kant (1724-1804), Foucault - que nunca foi (nem pretendeu ser) um pensador afeito à tradição - rejeitou e absorveu as idéias e os pontos de vista de filósofos como Georg W. F. Hegel (1770-1831), Martin Heidegger (1889-1976), Jean-Paul Sartre (1905-80), Karl Marx (1818-83) e Friedrich W. Nietzsche (1844-1900).

Rompendo com Hegel, cuja filosofia insistia na coerência e no sentido da história, ele progrediu para Heidegger, ao vera a situação do homem, em grande parte, determinada por fatores fora do alcance da razão. A partir deste último, aderiu, por algum tempo, ao existencialismo de Sartre que, por sua vez, veio a ser muito influenciado por Heidegger. O existencialismo sartriano era, basicamente, subjetivo e acreditava muito pouco da precessão ontológica da essência. Porém, de todos, o que mais influenciou sua forma de pensar foi Nietzsche

Após ler os escritos deste, Foucault - que lamentava sentir o seu pensamento ainda preso - buscou criar os seus próprios conceitos. Na ocasião, publicou Folie et déraison: Histoire de la folie à l'âge classique, no qual demonstrou como a nossa idéia de loucura passara por decisivas descontinuidades e contingências. Ao ser publicado em 1961, este livro consolidou como um dos líderes intelectuais de Paris.

Em 1966 concluiu Les mots et les choses: Une archéologie des sciences humaines,[1] obra que levaria as suas idéias a uma posição de destaque em todo o mundo ocidental. Seu objetivo principal era investigar a maneira pela qual o próprio conceito de humanidade havia sido tratado até se tornar um estratégico objeto de nosso saber.

Foi em 1973 que Foucault publicou o ensaio Ceci n’est pas une pipe no qual discorria sobre a obra pictórica de Magritte quase sempre voltada - ao menos, aparentemente - para a representação de objetos da realidade cotidiana como guarda-chuvas, chapéus, balaústres, sapatos, nuvens, etc.

Mas, por outro lado, o belga, com alguma freqüência, mudava tais objetos de contexto, associando-os com outros com os quais, a princípio, não teriam qualquer ligação. Pode-se dizer que, muito em função desse hábito, suas telas possuíam uma parcela de estranheza, levando o espectador a se perguntar, a todo momento, sobre o seu sentido. Só após um certo convívio com elas é que este percebia que o propósito de Magritte nunca fora, na verdade, representar a realidade, e sim, prioritariamente, revelar de seus muitos mistérios.

 

 

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Magritte tornou-se um dos artistas mais famosos do século passado. Seu pai era alfaiate e um homem de negócios, e sua mãe uma modista de chapéus. Ele tinha apenas quatorze anos quando esta cometeu suicídio, fato que o marcaria profundamente. Começou a pintar em 1915, aos dezessete anos, e estudou na Academia de Belas Artes de Bruxelas, entre 1916 e 1918. Em 1922 casou-se com Georgette Berger com quem conviveu durante toda a vida. Trabalhou como designer gráfico numa fábrica de papel de parede, onde criou diversos cartazes. Entre suas primeiros quadros surrealistas estão Le jockey perdu (“O jockey perdido”) e L’assassin ménacé (“O assassino ameaçado”), pintados, respectivamente, em 1926 e 1927.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1. René Magritte, Le jockey perdu (1926).

 

Em 1927, expôs sessenta e um pinturas na galeria Le Centaure, onde conheceu Louis Scutenaire de quem tornaria amigo. Mudou-se para Paris, onde conviveu com muitos surrealistas, entre eles, André Breton (1896-1966), Louis Aragon (1897-1982) e Philippe Soupault (1897-1990). Em 1930 se desentendeu com Breton e, em seguida ao incidente, saiu, definitivamente, daquela cidade. Em 1936 expôs nos Estados Unidos, onde teve inicio o sucesso de suas obras. De 1943 a 1947, adotou uma técnica de pintura diferente, semelhante ao impressionismo de Pierre-Auguste Renoir (1841-1919). Dois anos antes de sua morte (1967), o Museu de Arte Moderna de Nova York dedicou-lhe uma importante retrospectiva.

Um dos quadros mais polêmicos de Magritte foi, sem dúvida, La trahison des images (1928-9) em que a imagem de um cachimbo aparece acompanhada pela frase Ceci n’est pas une pipe (“Isto não é um cachimbo”). O problema da relação entre o objeto e sua representação será abordado e desenvolvido por ele em vários outros trabalhos. O discurso de Foucault sobre suas telas, ao analisar algumas características da língua e dos objetos, geralmente ignoradas na vida cotidiana, privilegia as novas relações que se pode criar entre as palavras e as imagens. Desta forma, uma palavra pode tomar o lugar de um objeto na realidade, ou uma imagem pode tomar o lugar de uma palavra numa proposição. Há muitos exemplos dessas substituições na obra magrittiana.

As pinturas La trahison des images e Les deux mystères, analisadas prioritariamente por Foucault, são um exemplo de como o texto, ao mesmo tempo que pode substituir a imagem, pode mudar o significado dela. Em determinado momento de sua explanação, ele se detêm na suposta tensão existente entre a imagem e sua legenda. A que se refere esta frase afinal? Ao aprofundar-se na relação do texto e da imagem, ele arrisca expor a sua mecânica interna, classificando-a como um caligrama que pretenderia apagar, ludicamente, as mais velhas oposições de nossa civilização alfabética: mostrar e nomear; figurar e dizer; reproduzir e articular; imitar e significar; olhar e ler. Para Foucault, esta qualificação da imagem como um caligrama passaria por um reconhecimento necessário das relações internas existentes entre seus componentes concepto-imagéticos.

 

 

 

 

 

 

 

 

2. René Magritte. La trahison des images (1926).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

3. René Magritte. Les deux mystères (1966).

 

Mais à frente, lançando mão de esquemas, ele resumirá as relações possíveis entre a imagem e o texto em três níveis fundamentais de leitura (Texto/Imagem, Imagem/Texto, Textoimagem/Textoimagem), entendendo-se por leitura a ordenação lógico-visual dos elementos do quadro com vistas à formação de um sentido.

 

 

3

 

Aspectos das possibilidades de combinação exploradas por Magritte e analisadas por Foucault também podem ser vistos, nos dias de hoje, na propaganda e na publicidade. É possível ver alguns anúncios publicitários em que tanto a imagem substitui o texto quanto o texto substitui a imagem, assim como outras em que a imagem complementa e mesmo dá sentido ao texto.

A logomarca da montadora de automóveis alemã, Volkswagen, é um bom exemplo de fusão de imagem e texto. Desde os primeiros tempos da Volkswagen,[2] o logo com a letras V e W juntas dentro de uma "bolacha", foi o símbolo da DAF (Deutsche Arbeitsfront), um tipo de sindicato da antiga fábrica Volkswagen GmbH.

Já o logotipo "cruzado" da Volkswagen foi registrado em outubro de 1948 no Departamento Alemão de Patentes em Munique e, desde então, tem sido usado em diferentes variantes. Até hoje o seu criador é desconhecido.

 

 

 

 

 

 

4. Evolução da logomarca da Volkswagen ao

 longo de seus sessenta e dois anos de criação.

 

A atual versão do logo da Volkswagen é usada desde 2000. Sua aparência tridimensional está em linha com os mais altos padrões da marca, sem perder a familiaridade, desde então.

            A cor azul foi fortemente moldada à identidade da marca Volkswagen. Hoje é considerada por muitas pessoas como "a cor Volkswagen". Ao lado do cinza metálico, o azul usado no logo é uma das cores primárias da marca. É reconhecida como amigável, essencial e inovadora - características com os quais a marca se identifica estreitamente.

Em toda a sua publicidade atual, logo abaixo da logo, surge a escrita em alemão Das Auto (“O automóvel”). Imagem/Texto.

 

 

 

 

 

5. Logomarca Volkswagen do Brasil.

 

 

A Volkswagen possui um concurso anual no Brasil - do qual participam estudantes de design de Instituições de Ensino Superior de todo o país que estejam no último ano de curso - cujo prêmio é o cobiçado estágio de um ano no Estúdio de Design da Montadora em São Bernardo do Campo em São Paulo. Neste concurso, intitulado Talento Volkswagen Design, surgiu a idéia de aliar o texto e a imagem.[3]

No concurso de 2010,[4] “Customize” foi o tema que os projetos apresentados buscaram traduzir em representações gráficas e sketches e uma comissão julgadora foi composta para escolher aquele que melhor conseguisse aliar a imagem da empresa ao tema da customização, objetivando a criação de um modelo de automóvel customizável tanto em cores, como em algumas peças e, até mesmo, no projeto de um carro completo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

6. Apresentação de projeto no VRC (Virtual Reality

Center) da Volkswagen do Brasil.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

7. Projeto de Milton Tanabe para o concurso

Talento Volkswagen Design.

 

 

 

Referências Bibliográficas

 

ARCHER, M. Arte contemporânea: Uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

CAMPOS, J. L. “Eis dois cachimbos: Roteiro para uma leitura foucaultiana de Magritte”. In: Poiésis – Estudos de Ciência da Arte (EdUFF), v. 8, 2005.

FOUCAULT, M. Isto não é um cachimbo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

LARICA, N. J. Design de automóveis: Arte em função da mobilidade. Rio de Janeiro: 2AB/PUC-Rio, 2003.

NORMAN, D. A. The design of future things. Basic Books, 2009.

PAQUET, M. Magritte ou l’eclipse de l’être, Paris: Différence, 1982.

STRATHERN, P. Foucault em 90 minutos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

TAMBINI, M. O design do século. São Paulo: Ática, 1999.

 

 

 

Sobre os autores:

 

Alessandro Valério Santos – Aluno do Programa de Pós-graduação (Mestrado) em Design da Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

 

Jorge Lucio de CamposDoutor e Pós-Doutor em Comunicação e Cultura (História dos Sistemas de Pensamento) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ). Graduado e Mestre em Filosofia (Estética) pela UFRJ. Professor do Programa de Pós-graduação (Mestrado) em Design da ESDI/UERJ.



[1] Nele Foucault chamou de episteme o conjunto de pressupostos, preconceitos e tendências que estruturariam e delimitariam o pensamento de qualquer época acerca de qualquer coisa. Trata-se de uma palavra grega da qual também se derivou epistemologia – a investigação dos fundamentos em que baseamos nosso conhecimento. Uma determinada episteme tende a originar uma determinada forma de conhecimento. Foucault chamou tal tendência de “discurso”, ou seja, a acumulação de conceitos, práticas, declarações e crenças produzidos por uma determinada episteme.

 

[2] Foi registrado em 1938.

[3] A regra é, através de um tema sugerido (texto), o candidato deve criar o automóvel que se adéqüe a este tema (imagem).

[4] O ganhador em uma das categorias do concurso foi o aluno Milton Tanabe da UNESP, que apresentou o projeto do automóvel VW Naked, um carro altamente customizável tanto na parte gráfica quanto na forma física (ilustração 7).

 

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