Sincronia Primavera 2002

 

 

CÂNON E TRANSGRESSÃO:

QUATRO RÁPIDAS OBSERVAÇÕES SOBRE A POESIA CONTEMPORÂNEA

 

O verdadeiro artista é o que dialoga com

sua obra, o impostor dialoga com seu público

Ernst Gombrich

 

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Incomode ou não esta afirmativa, muito ou pouco, algumas de nossas ‘melhores’ cabeças, pensar em termos de cânon, nos dias de hoje, é, ao meu modo de ver, estar na contramarcha da história. Isso em qualquer situação, em relação à qualquer atividade, área de conhecimento ou de atuação que se queira interveniente. Uma das mais valiosas conquistas (senão a mais valiosa) efetuadas pelo homem deste fim-de-século foi a sua conscientização, ao que me parece (no mínimo, torço para tanto) definitiva, de que a autonomia é um dado natural, e não algo muito maior – uma espécie de ideal dourado – pelo qual sempre valeria a pena lutar e até morrer, mas que ficaria ad infinitum isolado numa campânula ou difratado como um traço no horizonte, modulado no mapa sinuoso de um território, enfim, inalcançável por si só. O fim desta importante mistificação pode representar, é certo, um decisivo passo emancipatório e não somente o de uma prática onanística de cerca de três séculos. Afinal de contas, ser autônomo – ou estar consciente de que ser autônomo é algo perfeitamente exeqüível – é uma condição intrínseca para qualquer ser pensante que se saiba enquanto tal e se importe com isso.

Em seu estágio atual, esse processo – que também supõe, como acabei de propor, o de uma providencial autoconscientização – já se revela urgente para alguns obstinados segmentos (lamentavelmente ainda tímidos e estranhos demais à maioria de nós) da sociedade, favorecendo, claramente, uma pulverização dos metadiscursos de outrora em micronarrativas deveras maleáveis no que tange à conjunção e à pertença simbólicas. Em função disso, falar-se em conceitos de índole platônica como 'modelos', 'paradigmas' e 'cânones' torna-se complicado, ao menos no que tange à produção dissidente e estridente daqueles segmentos. Quero dizer com isso que, em termos literários, os poetas competentes de agora não têm outra alternativa que trabalharem individualmente, um pouco solitariamente, em busca de 'soluções' não submetíveis aos critérios velozes de avaliação 'cômoda' oriundos quase sempre das máquinas de rostificação que os homens da mídia e os burocratas de sempre acionam sem parar.

 

 

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A exemplo do que já ocorre por aí, como sabemos, em alguns espaços, criar significa, sobretudo, ‘resistir’ (acompanhando o sentido do termo latino resistere, ou seja, 'colocar de novo'), cada vez mais 'situar-se' diante dos múltiplos reducionismos gratuitos que nos fazem cerco, 'fazer frente' aos incontáveis universalismos sonsos, espalhados, camufladamente, como engenhos de guerra, ao nosso redor. Seja como for, isso implica em não se submeter à tentação das filiações fáceis. Canonizar-se em arte (literatura, poesia...) significa remeter-se a um rol de nomes santos, de indivíduos e escolas mortos (alguns já em adiantado estado de decomposição), com suas receitas demasiadamente 'prontas' para inspirarem atitudes adequadas para a dinamização de nosso presente. Isso posto, não creio que seja possível (ou aconselhável) falar-se seriamente, hoje, de um cânon, ou mesmo de cânones em poesia, e muito menos, levantar a hipótese de seu restabelecimento. De que serviria fazê-lo senão para uma estratégia fatal de fingimento? Pois é verdade que não faltam aqueles que fingem e sabem fazê-lo bem, para quem nada acontece à toa, tudo está sempre em ordem, o tempo nunca passa, etc. etc.

Ao que me parece, a mais genuína (e digna) inclinação da poesia brasileira contemporânea é, a exemplo do que acontece em todo o mundo ocidental, a sua vocação para desconstruir. Desconstruir as grandes referências sejam elas quais forem (pátrias, apátridas ou alienígenas), as grandes progenituras sejam elas ‘genuínas’ ou não, as grandes doutrinações sejam elas justificáveis, vantajosas ou não, desconstruir, pensando bem, o próprio habitus - culturalmente perverso nestas terras - de sempre se pôr num estado de referência, de descendência, de engajamento frente ao outro, de sempre submeter-se, docilmente, aos encantos de sua 'geração espontânea'. Embora não sejam muitos, são significativos os poetas que, driblando o apelo 'canônico' do mercado, propõem, com consistência, dicções alternativas que não necessariamente rompem, mas renovam, redinamizam o que já foi fartamente dito ou timidamente gaguejado. Mais premente do que uma pluralização gratuita (a essa altura, inevitavelmente reacionária e catastrófica) seriam a pesquisa e a experiência em bases não-ortodoxas, uma nova configuração da poesia, a possibilidade de torná-la um aspecto intersticial da vida, de uma nova dimensão do existir que possamos, em breve, quem sabe todos nós, assumir sem nenhuma 'culpa'.

 

 

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No prólogo de seu Critique et clinique,[1] Deleuze, em cima de uma fala instigante de Proust – a de que “os belos livros estão escritos numa espécie de língua estrangeira” (Contre Sainte-Beuve), nos adverte que, para os artistas (particularmente os contemporâneos, aí inclusos os poetas), “o problema de escrever é também inseparável de um problema de ver e de ouvir,  pois, “com efeito, quando se cria uma outra língua no interior da língua, a linguagem inteira tende para um limite assintático, agramatical, ou que se comunica com seu próprio fora”. Uma outra convicção, provocativa como a anterior, mas originalmente fomentada por Klee – a de que não cabe ao artista reproduzir o visível, mas tornar visível o que ainda não era – é igualmente pervasiva (tornando-se quase sempre um pouco urgente) para a sobrevivência das práticas poéticas no mundo hodierno. Juntamente com a estrangeiridade  proustiana, ela abriga (ou se aninha em?) uma terceira: a de que uma postura de busca de diferenciação deve ser, assumida e estrategicamente, levada adiante por todos os artistas no sentido da implementação, mesmo que um tanto obstinada e até áspera, de uma visibilidade exclusiva. O fato é que, numa sociedade como a nossa, cada vez menos refratária não só à repetição e à reprodução de suas coisas, ferramentas e relações, mas também aos jogos fáceis de linguagem, em seu sentido mais torpe, ou seja, enquanto dispositivos de obturação do real, de fixação e perpetuação da histeria paralisante do capitalismo avançado, ou a poesia se descaracterizará de vez (como vem ocorrendo, na maioria das vezes) ou ela, de algum modo (e não me perguntem qual!) encontrará um caminho – mesmo que este, lembrando Heidegger, “não conduza a parte alguma”, arriscará um rosto incerto, afirmará uma identidade-de-si-no-outro, embora pagando o preço (para muitos poetas, alto demais) do anonimato mercadológico e da apatia crítica. 

 

 

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Aqui no Brasil, pode-se dizer que tal situação é peculiarmente grave. O movimento modernista realizou um oportuno sangramento em nossa literatura e em nossas artes plásticas (na verdade, em nossas próprias mentalidades, e não só aqui, mas em toda a América espanhola, na Espanha e em Portugal), de modo que, sobretudo a partir das décadas de 20 e 30, sedimentou-se um importante grau de amadurecimento e conscientização em relação à fatura artística em termos de uma efetiva assunção de suas potencialidades estéticas intrínsecas ou não. Contudo não devemos esquecer a sua incontornável marcação histórica. A incisão foi feita no lugar e na hora certas, o que, por outro lado, não justifica que o processo de cicatrização demore mais do que o tempo necessário. O influxo prolongado a que alude uma frase do poeta José Carlos Capinan ("a contemporaneidade na poesia brasileira ainda é marcada pelos modernistas")[2] se deve a uma relação perversa que os brasileiros ainda mantém com as novidades, em função de um viciamento cultural aqui secularmente imposto (e pior, já há muito enraizado) pela lógica (neo)colonialista. Acostumados, século após século, a receber acriticamente, a repetir mecanicamente, a cumprir docilmente todo tipo de metas e de protocolos, tratamos como autênticas formas platônicas (em relação às quais, devemos, na pior das hipóteses, nos comportarmos como ‘más cópias’) atitudes e ações inteligíveis (mesmo inquestionáveis) apenas em seu espaço-tempo, de modo que, até hoje, dicções ‘circunstanciais’ (apesar de ser ridículo negar a genialidade e a inspiração de várias delas) como as de Oswald, Bandeira, Drummond, Cabral ainda nos parecem referências obrigatórias quando deveria ser, no máximo, aconselhável acolhê-las enquanto elementos dinamizadores de nossas próprias fabricações. Todas têm, sem dúvida, o seu quinhão de densidade, a exemplo de tantas outras dicções ‘universais’ como as de Mallarmé, Apollinaire, Mayakovski, Pound, etc. Cabe, porém, aos poetas daqui (mas também aos de quaisquer outras paragens) agenciar os seus recursos pessoais a partir daqueles elementos, arejando, criativamente, as suas produções com uma maturidade poética que leve em conta tudo o que se fizer justificável, seja em nome da mais intempestiva transgressão ou da mais assumida transreferencialidade citacional.

 

Jorge Lucio de Campos



[1] Gilles Deleuze, Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 1997, p.9.

[2] Poesia Sempre, 8, junho de 1997.

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