CÂNON E TRANSGRESSÃO:
QUATRO RÁPIDAS OBSERVAÇÕES SOBRE A POESIA CONTEMPORÂNEA
Ernst Gombrich
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Incomode ou não esta
afirmativa, muito ou pouco, algumas de nossas melhores cabeças, pensar em
termos de cânon, nos dias de hoje, é, ao meu modo de ver, estar na contramarcha
da história. Isso em qualquer situação, em relação à qualquer atividade, área de
conhecimento ou de atuação que se queira interveniente. Uma das mais valiosas conquistas
(senão a mais valiosa) efetuadas pelo homem deste fim-de-século foi a sua
conscientização, ao que me parece (no mínimo, torço para tanto) definitiva, de que a
autonomia é um dado natural, e não algo muito maior uma espécie de ideal dourado
pelo qual sempre valeria a pena lutar e até morrer, mas que ficaria ad infinitum isolado numa campânula ou difratado
como um traço no horizonte, modulado no mapa sinuoso de um território, enfim,
inalcançável por si só. O fim desta importante mistificação pode representar, é
certo, um decisivo passo emancipatório e não somente o de uma prática onanística de
cerca de três séculos. Afinal de contas, ser autônomo ou estar consciente de que
ser autônomo é algo perfeitamente exeqüível
é uma condição intrínseca para qualquer ser pensante que se saiba enquanto tal
e se importe com isso.
Em seu estágio atual, esse
processo que também supõe, como acabei de propor, o de uma providencial
autoconscientização já se revela urgente para alguns obstinados segmentos
(lamentavelmente ainda tímidos e estranhos demais à maioria de nós) da sociedade,
favorecendo, claramente, uma pulverização dos metadiscursos de outrora em micronarrativas
deveras maleáveis no que tange à conjunção e à pertença simbólicas. Em função
disso, falar-se em conceitos de índole platônica como 'modelos', 'paradigmas' e
'cânones' torna-se complicado, ao menos no que tange à produção dissidente e
estridente daqueles segmentos. Quero dizer com isso que, em termos literários, os poetas
competentes de agora não têm outra alternativa que trabalharem individualmente, um pouco
solitariamente, em busca de 'soluções' não submetíveis aos critérios velozes de
avaliação 'cômoda' oriundos quase sempre das máquinas de rostificação que os homens
da mídia e os burocratas de sempre acionam sem parar.
2
A exemplo do que já ocorre
por aí, como sabemos, em alguns espaços, criar significa, sobretudo,
resistir (acompanhando o sentido do
termo latino resistere, ou seja, 'colocar de
novo'), cada vez mais 'situar-se' diante dos múltiplos reducionismos gratuitos que nos
fazem cerco, 'fazer frente' aos incontáveis universalismos sonsos, espalhados,
camufladamente, como engenhos de guerra, ao nosso redor. Seja como for, isso implica em
não se submeter à tentação das filiações fáceis. Canonizar-se em arte (literatura,
poesia...) significa remeter-se a um rol de nomes santos, de indivíduos e escolas mortos
(alguns já em adiantado estado de decomposição), com suas receitas demasiadamente
'prontas' para inspirarem atitudes adequadas para a dinamização de nosso presente. Isso
posto, não creio que seja possível (ou aconselhável) falar-se seriamente, hoje, de um
cânon, ou mesmo de cânones em poesia, e muito menos, levantar a hipótese de seu
restabelecimento. De que serviria fazê-lo senão para uma estratégia fatal de
fingimento? Pois é verdade que não faltam aqueles que fingem e sabem fazê-lo bem, para
quem nada acontece à toa, tudo está sempre em ordem, o tempo nunca passa, etc. etc.
Ao que me parece, a mais
genuína (e digna) inclinação da poesia brasileira contemporânea é, a exemplo do que
acontece em todo o mundo ocidental, a sua vocação para desconstruir. Desconstruir as grandes referências
sejam elas quais forem (pátrias, apátridas ou alienígenas), as grandes progenituras
sejam elas genuínas ou não, as grandes doutrinações sejam elas
justificáveis, vantajosas ou não, desconstruir, pensando bem, o próprio habitus - culturalmente perverso nestas terras - de
sempre se pôr num estado de referência, de descendência, de engajamento frente ao
outro, de sempre submeter-se, docilmente, aos encantos de sua 'geração espontânea'.
Embora não sejam muitos, são significativos os poetas que, driblando o apelo 'canônico'
do mercado, propõem, com consistência, dicções alternativas que não necessariamente
rompem, mas renovam, redinamizam o que já foi fartamente dito ou timidamente gaguejado.
Mais premente do que uma pluralização gratuita (a essa altura, inevitavelmente
reacionária e catastrófica) seriam a pesquisa e a experiência em bases não-ortodoxas,
uma nova configuração da poesia, a possibilidade de torná-la um aspecto intersticial da
vida, de uma nova dimensão do existir que possamos, em breve, quem sabe todos nós,
assumir sem nenhuma 'culpa'.
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No prólogo de seu Critique et clinique,[1]
Deleuze, em cima de uma fala instigante de Proust a de que os belos livros
estão escritos numa espécie de língua estrangeira
(Contre Sainte-Beuve), nos adverte que, para os
artistas (particularmente os contemporâneos, aí inclusos os poetas), o problema de
escrever é também inseparável de um problema
de ver e de ouvir,
pois, com efeito, quando se cria
uma outra língua no interior da língua, a
linguagem inteira tende para um limite
assintático, agramatical, ou que se
comunica com seu próprio fora. Uma outra
convicção, provocativa como a anterior, mas originalmente fomentada por Klee a de
que não cabe ao artista reproduzir o visível, mas tornar
visível o que ainda não era é
igualmente pervasiva (tornando-se quase sempre um pouco urgente) para a sobrevivência das
práticas poéticas no mundo hodierno. Juntamente com a estrangeiridade
proustiana, ela abriga (ou se aninha em?) uma terceira: a de que uma postura de
busca de diferenciação deve ser, assumida e
estrategicamente, levada adiante por todos os artistas no sentido da implementação,
mesmo que um tanto obstinada e até áspera, de uma visibilidade
exclusiva. O fato é que, numa sociedade como a nossa, cada vez menos refratária não só
à repetição e à reprodução de suas coisas, ferramentas e relações, mas também aos
jogos fáceis de linguagem, em seu sentido mais
torpe, ou seja, enquanto dispositivos de obturação
do real, de fixação e perpetuação da histeria paralisante do
capitalismo avançado, ou a poesia se descaracterizará de vez (como vem ocorrendo, na
maioria das vezes) ou ela, de algum modo (e não me perguntem qual!) encontrará um
caminho mesmo que este, lembrando Heidegger, não conduza a parte
alguma, arriscará um rosto incerto, afirmará uma identidade-de-si-no-outro, embora pagando o preço
(para muitos poetas, alto demais) do anonimato mercadológico e da apatia crítica.
4
Aqui no Brasil, pode-se dizer que tal
situação é peculiarmente grave. O movimento modernista realizou um oportuno sangramento
em nossa literatura e em nossas artes plásticas (na verdade, em nossas próprias
mentalidades, e não só aqui, mas em toda a América espanhola, na Espanha e em
Portugal), de modo que, sobretudo a partir das décadas de 20 e 30, sedimentou-se um
importante grau de amadurecimento e
conscientização em relação à fatura artística em termos de uma efetiva
assunção de suas potencialidades estéticas intrínsecas ou não. Contudo não devemos
esquecer a sua incontornável marcação histórica. A incisão foi feita no lugar e na
hora certas, o que, por outro lado, não justifica que o processo de cicatrização demore
mais do que o tempo necessário. O influxo prolongado a que alude uma frase do poeta José
Carlos Capinan ("a contemporaneidade na poesia brasileira ainda é marcada pelos
modernistas")[2]
se deve a uma relação perversa que os brasileiros ainda mantém com as novidades, em função de um viciamento cultural
aqui secularmente imposto (e pior, já há muito enraizado) pela lógica
(neo)colonialista. Acostumados, século após século, a receber acriticamente, a repetir mecanicamente, a cumprir docilmente todo tipo de metas e de protocolos,
tratamos como autênticas formas platônicas (em
relação às quais, devemos, na pior das hipóteses, nos comportarmos como más
cópias) atitudes e ações inteligíveis (mesmo inquestionáveis) apenas em seu
espaço-tempo, de modo que, até hoje, dicções circunstanciais (apesar de
ser ridículo negar a genialidade e a inspiração de várias delas) como as de Oswald,
Bandeira, Drummond, Cabral ainda nos parecem referências obrigatórias quando deveria
ser, no máximo, aconselhável acolhê-las enquanto elementos dinamizadores de nossas
próprias fabricações. Todas têm, sem dúvida, o seu quinhão de densidade, a exemplo
de tantas outras dicções universais como as de Mallarmé, Apollinaire,
Mayakovski, Pound, etc. Cabe, porém, aos poetas daqui (mas também aos de quaisquer
outras paragens) agenciar os seus recursos pessoais a partir daqueles elementos, arejando,
criativamente, as suas produções com uma maturidade poética que leve em conta tudo o
que se fizer justificável, seja em nome da mais intempestiva transgressão ou da mais
assumida transreferencialidade citacional.
Jorge Lucio de Campos