Sincronía Invierno 2002


ARTE, ÉTICA E POTÊNCIA DE SI: POR UMA CRÍTICA OUTRA DO TECNICISMO

Jorge Lucio de Campos*


O homem (ainda) está em busca do humano.

E. Levinas

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Qual seria a efetiva situação da arte no contexto crítico das sociedades contemporâneas cuja dinâmica cultural se mostra, cada vez mais, devedora das tecnologias avançadas, em especial, daquelas diretamente ligadas à comunicação? Estaria ela, inexoravelmente, morta ou, a bem da verdade, revitalizar-se-ia mediante uma potencialização de estratégias inéditas de relação/intervenção com/no tempo-espaço que é, na melhor das hipóteses, uma abertura para suas linhas de força – milenarmente comprometidas com o ritual, com a burocracia e com a heteronomia? Diante da exacerbação do projeto moderno de normalização técnico-científica – em que as relações de poder, travestindo-se de relações de fascínio e estas, por sua vez, dissimulando sua condição de captura e enquadramento, favorecem uma atrofia das relações de pacto – de que jeito poderia o artista contribuir para o reequilíbrio do quadro, em função de seu íntimo envolvimento com a instância ética – foco primordial de qualquer chance de retomada do pacto simbólico?

Após ter sido, gentilmente, convidado por sua Comissão Organizadora, estas foram algumas das questões que conduzi ou, para ser sincero, me conduziram – quase que me levando pela mão – ao 4o Simpósio Internacional do Programa de Pós-graduação em Ciência da Arte da Universidade Federal Fluminense. Deparado com o tema central do evento – e com o recorte temático da mesa redonda na qual fui inserido – não poucas inquietações me tomaram de assalto: por onde – para citar uma – eu deveria, exata e adequadamente, começar? Senti que era necessário, por exemplo, definir problemas que servissem, simultaneamente, como um ponto de apoio e um ponto de partida – pertinentes e consistentes o bastante para permitir a formulação de digressões minimamente razoáveis sobre o assunto. Urgia estabelecê-los logo para, depois, justificando a fatura de uma trajetória, poder chegar a algum lugar em que, sem atropelos, pudessem caber as minhas convicções pessoais. Uma inquietação adicional dizia respeito a de que maneira chegar a ele, sem me afastar muito de uma rota pré-estabelecida de modo a evitar o perigo de um nomadismo estéril que poderia vir a trair a proposta em torno da qual se justificavam, aos olhos da Comissão, o evento e minha presença e inserção nele. Enfim, a dificuldade inicial, em sintese, era: de que forma tornar justa a minha participação em relação à(s) intencionalidade(s) justificadora(s) daquela ocasião?

Quis o acaso que minha 'astúcia' inicial se resumisse – na tentativa de encetar o meu (sempre doloroso) processo particular de usinagem de idéias – a buscar um apoio imediato em três falas. Afinal, esbarrara com elas, na ocasião, e suas possibilidades me ressonavam na mente. A primeira delas, eu a ouvira numa entrevista com Edgar Morin, exibida na televisão a cabo, em que este, logo no começo, afirmava ser "a violência fruto também do conhecimento fragmentado e mutilado que forma a base de nosso sistema educacional, um sistema incapaz de entender o conjunto, incapaz de compreender o indivíduo em sua totalidade, incapaz de compreender a própria humanidade" e ainda que "não estamos longe do momento em que as ciências humanas vão acabar (o grifo é meu) transformando nossa noção de homem numa noção absolutamente esteril". A segunda, era de Jean Baudrillard que, num de seus ensaios ("O complô da arte"), sustenta que "toda duplicidade (idem) da arte contemporânea se resume nisso: reivindicar a nulidade, a insignificância, o não-sentido, visar a nulidade quando se é nulo. Visar o não-sentido quando se é insignificante. Pretender a superficialidade em termos superficiais". Quanto à terceira, interessei-me por ela ao assistir, no videocassete, aquele que, à época, era o último filme de Peter Greenaway. Nele um dos personagens (o protagonista da trama, de nome Philip Emmenthal) colocava, taxativa e provocativamente, que "a arte deve ajudar (idem) em tempos de crise. Estou certo, contudo, que comida, álcool e sexo distraem mais".

Após ponderar sobre a afirmação de Morin e entrecruzá-la com a do fictício Emmenthal, percebi que a questão que, sem demora, se impunha (e nisso resumia as demais) era, na verdade: em que medida poderia a arte ajudar (ou voltar a ajudar) o homem a se autocompreender e a se perceber – a contrapelo de uma tendência universal à simplificação (por que não dizer: ao simplismo?) – em sua complexidade? Ocorreu-me também o quanto seria aconselhável entender, naquele momento – visando aproveitá-la ao máximo – por complexidade um humanismo em bases alternativas – uma atitude de predisposição para a re-equilibração da crise civilizacional – que pressuporia, inevitavelmente, o seu adequado entendimento e assimilação. Dentro de tal contexto, a própria arte precisaria ser compreendida (ou, na pior das hipóteses, recompreendida – em condições, é claro, mais razoáveis e consistentes que as de agora – por seus agentes cardeais: os artistas, mas também pelo público, pelos especialistas, pelos críticos, pelos teorizadores e, principalmente, pelos investidores e patrocinadores.

De Baudrillard, importou, sobretudo, destacar o significado conferido à palavra duplicidade que podia ser perfeitamente entendida como 'redundância', assim como 'relação de dupla face', 'condição de dubiedade', 'estado de impasse', 'paradoxo', 'contradição'... Entrecruzando, adiante, sua fala com a do personagem de Greenaway, senti necessidade de determinar melhor em que sentido a arte deveria ajudar nesses tempos de arruinamento que seriam igualmente (segundo o diagnóstico do pensador francês) os de uma fragmentação excessiva do simbólico e de uma mutilação fatal da significância. Para arrematar, não pude deixar de detectar, nas palavras de Emmenthal, a ambiguidade semântica contida no verbo ajudar, já que – isso é amplamente sabido (ao menos pelas mentes percucientes, por raríssimas que sejam), na mera condição de paliativo (a busca recorrente da paliação e da analgesia é um sintoma representativo dos contextos de rasgamento simbólico) de nossas 'dores' neste mundo, a experiência estética visceral será (está sendo), progressivamente, suplantada por dispositivos rápidos e efetivos, entre eles, os farmacológicos, os midiáticos etc.

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Simplismo, redundância, impasse, paradoxo, analgesia, rasgamento... Tais conceitos (em verdade, um encadeamento conceitual perfeitamente assimilável) dizem mais do que poderíamos, a principio, supor. Orbitamos ainda, isto é notório, em torno de um fenômeno incomodamente 'familiar' (não se justificando, sob hipótese alguma, deixarmos de abordá-lo, pondo-o à margem por uma predisposição à exaustão) ao homem ocidental, particularmente, o dos últimos dois séculos. Não haveria como, portanto – a não ser a reboque de uma embaraçosa postura de indigência intelectual – não tocarmos aqui, uma vez mais, no já trivializado tema da condição de crise... Não se trataria, no caso – forçando um olhar 'desproblematizador' – da mera oscilação de uma única e reiterada sintomatologia de declinio ou de um estado de incerteza setorizado e passageiro, como alguns que o antecederam e com os quais já teríamos, inclusive, nos acostumado a lidar: seja pelo poder de adaptação, seja pela sabedoria da paciência, seja pela validade da empiria acumulada.

Nesta ocasião, lidamos com algo, decerto, inédito, virulento demais para ser facilmente compensado ou subestimado, de um acontecimento demasiado surpreendente, de um processo sorrateiro de cujas rajadas silenciosas tomamos conhecimento por todo lugar e quiçá tardiamente. Trata-se de uma crise que vai além do próprio entendimento hodierno do que seja uma crise – possivelmente, a mais perigosa (porque pode implicar – e ora implica – em prejuízos substanciais, alguns deles irrecuperáveis) e dissimulada (porque chega à maioria de nós de maneira furtiva e, estranhamente, atraente). Trata-se, igualmente, em meio aquelas de que se tem notícia, da de maior abrangência e viabilidade, generalizada em seu dar-se e atrevida em sua capacidade de permanência e recrudescência, difícil, com efeito, de se apreender, enfrentar e reverter.

Não se contentando com as espáduas do gigante, o anão foi ao topo de sua cabeça e, de lá, passou a nos observar atentamente e melhor, pois agora tudo vê sobre o que somos – sussurrando palavras de ordem nos ouvidos do parceiro. A minúscula criatura sabe, sobre nós, o que inclusive não sabíamos. Tirando proveito máximo de sua mínima compleição – garantido pelo inacreditável distanciamento do solo (que o torna praticamente inacessível a nós), nos mantém, panopticamente, diante de si, prisioneiros das cartas marcadas de seu olhar de máquina e – cristalina a nossa perplexidade – descaradamente nos manipula. O que, afinal, sería ou representaria ele? Uma espécie de versão bizarra do Big Brother? Um Pequeno Irmão fortalecido – por certo a contragosto, se fosse o caso, de Winston Smith e Julia, os infelizes protagonistas de 1984, e de seu autor George Orwell – por uma invisibilidade colossal, disfarçada na aparênca fácil do gigante debilóide? Uma brincadeira de mau gosto como as oferecidas por esses deprimentes reality shows que, à guisa do pesadelo proposto por Cortazar aos dois irmãos de Casa tomada (o mais provocante conto de seu Bestiário), invadem, anonimamente, nossos apartamentos deixando atrás de si apenas ruídos, e tanto nos oprimem, sem que o percebamos, hoje em dia? Tão nítidas se tornam, para aquela esdrúxula simbiose de olho e corpo, de imagem e registro, de captura e processamento, as nossas incontáveis fraquezas e desejos que com elas brinca e joga, sempre com um tom sarcástico. Tão óbvia lhe parece a nossa hybris que nela só faz investir, furiosa e implacavelmente. Fome de saber (mas não de sabedoria). Ânsia de renovação (mas não de criatividade). Simpatia pelo bruto do texto (mas não pelo sutil das entrelinhas). Horror vacui ao revés: é a busca da plenitude discursiva que nos entala e empanturra, não a aerofagia das lacunas – matizado esvaziamento completante.

Do gigantismo do atual projeto – que dissemos ser o da normalização técnico-científica – é difícil que alguém, atento ao que acontece, duvide. Crise de civilização pela via de um surto generalizado (ou de uma troca de casca, atenuam os otimistas) em relação ao qual temos que nos resolver. Porém o que fazer em relação a tantas ocorrências inquietantes porque contraditórias? Quem sabe, primeiramente, tentar entendê-las, levando em conta, a real medida de sua extensão e pervasividade, e, após isso e só então, se apropriar de seus resultados. Torná-la, mediante a prática rigorosa dos conceitos, menos arredia e mais esclarecedora de si e de nós, de nossa própria (des)situação. Afinal o que a fez (e faz) acontecer desta forma e não de outra? Por que o ritmo solto do capitalismo avançado submeteu, no momento contemporâneo, com tanta rapidez e facilidade – como se fossem ninharias – os grandes fluxos que, historicamente, lhes antecederam, ou seja: os do Ser (os ontológico-metafísicos do momento grego), os de Deus (os teológico-morais do momento medieval) e os do próprio Homem (os antropológico-críticos do momento moderno)? As nuanças fecundas da passagem do mythos ao lógos perderam nitidez no cerne da velocidade pura: produzir em vez de sentir e pensar, apagar o mundo em vez de assiná-lo, ruminar o tempo, enfim, e não atravessar as eras.

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Neste sentido, resta perguntar: em que pé estaríamos, então? Parece-me que a situação dita 'pós-moderna' diz respeito, fundamentamente, ao nosso grau de envolvimento com e de responsabilidade frente às questões do presente, destacando-se a da premência de um investimento individual na fabricação qualitativa de um porvir coletivo. Afinal de contas, o que é razoável esperar quanto ao futuro? O que, nele, poderá nos surpreender de forma decisiva? O que será preciso fazermos para que, visando sempre apurá-lo, consigamos intervir intensamente nesse processo? O modelo econômico-político em vigor, assumidamente tecnicista e dissipativo em seus fundamentos e intenções – e predatório, por excelência, em suas estratégias de ação – favorece menos o investimento científico-econômico no que é agora do que a aniquilamento do que possa vir a ser depois. Quem disse que o que é, logisticamente, vantajoso para a ciência e para a economia (que, lamentavelmente, não são – e estão longe de se tornar – uma scientia, no sentido de uma 'habilidade em lidar com', e uma oikonomía, no sentido de uma 'capacidade de dispor belamente (d)o outro'), ou melhor, para os desígnios de seus agentes e mandatários (urge determinar, logo de uma vez, quem eles são, o que querem e o que fazem) é necessariamente benéfico para o homem se o considerarmos sob uma perspectiva generosa? Tal modelo, que foi viabilizado pelo desenvolvimento infra-estrutural relativamente recente de certas sociedades – enfim integradas numa e por uma lógica inter-trans-nacional – nos tem, seguramente, conduzido a ganhos que, embora surpreendentes na esfera dita 'material' (nível ralo da espetacularidade em si), não tem sido tão auspiciosos – muito em função de um investimento travado por interesses mesquinhos – na esfera dita 'espiritual' (nível denso das superações qualitativas).

Apesar de, na prática, isto ser válido tão-somente para segmentos privilegiados da humanidade (o que não deixa de ser um fato deplorável, embora se trate antes de uma questão politica, de uma questão de esforço e boa vontade políticos), vive-se hoje, certamente, com maior qualidade do que há cem anos atrás. Produzimos bens e nos locomovemos com uma extrema agilidade. Incrementam-se os procedimentos, sobretudo, os relativos aos meios gerenciais e laboratoriais. Todavia há várias conseqüências a ainda serem consideradas. Resta explorar o lado escuro da lua. Como dizem os antigos: o que é bom tem o seu preço. A todo momento, seqüelas são detectadas – algumas delas alarmantes – oriundas da ingerência irresponsável (movida pela busca insana de lucro ou por mero arrivismo) dos tecnocratas na biosfera, e do surgimento (quase que um pipocar) dos chamados 'mercados globalizados' – com a conseqüente imposição – mesmo que velada – de certos princípios e de sua respectiva normatividade, amiúde refratária às sutilezas do humano. A razoável quinhão da população mundial são impostas – em nome de um pseudoprogresso, na prática, uma metanarrativa paralizante e rapinante – condições subumanas e, mesmo, inumanas.

Segundo essa lógica perversa, você é o quanto produz (pois ninguém que não tenha capacidade produtiva merece existir), vale pelo que pode contribuir, ou seja, é avaliado segundo a medida de sua participação na ceva (pan)capitalista. Se você não proporciona qualquer tipo de lucro a alguém, mesmo que esse alguém venha a ser você, então você não é (não merece ser e ter) absolutamente nada. Onde fica, por conseguinte, a humanidade do homem? Somente no limbo das boas intenções? Não obstante esta seja, até agora, uma lição mal estudada e aplicada – o fato de não tê-la aprendido é, decerto o mais grave e injustificável de nossos fracassos – e não saibamos, satisfatoriamente, responder tais perguntas, creio ser possível apontar para algo, apostar em algo como, por exemplo, o que chamo de relação com a alteridade e potência de si.

Apelando a Habermas e a Apel que nos asseveram a validade emancipatória de uma ação comunicativa, mas também a Deleuze e Guattari que, com paciência professoral, nos alertam para a urgência do conceito, eu diria que qualquer fecundo imbricamento entre filosofia, arte e ciência – ora favorecendo, graças ao empenho de parte de nossa intelligentsia, uma configuração que poderá quiçá tornar-se a nossa, no sentido de viabilizar, digna e adequadamente, o que melhor nos expressa – não pode prescindir de nenhum dos dois. Impossível negar que uma desagradável impressão, por vezes, nos atravessa vivamente: a de que (ao menos, vende-se a notícia) uma incômoda paralisia singraria os empreendimentos filosóficos e artísticos de nosso tempo, não atingindo, com o mesmo espalhafato, os científicos. Até que ponto seria ela confiável? Se houvesse, em curso, um tal marasmo do sentir e do pensar, ambos espaços não estariam sendo vistos e tratados de modo tão articulado: entre si – o dos conceitos, que são matéria da filosofia, ao das sensações e afetos, que são matéria da arte e vice-versa – e entre eles e um terceiro, o das funções, que são matéria da ciência, apesar da falsa imagem de auto-suficiência e inabalabilidade alardeada sobre esta última. Conquanto seja verdade que, a despeito dos boatos, nossas fabricações epistemológicas se mostrem instigantes, tais mistificações têm a ver com uma onda de insegurança que ora nos assola por igual e, praticamente, sobre todas as coisas: sobre o que seja realidade (e não já simulação), sobre o que ainda possam nos informar os signos acerca desse mundo tão indecidível – nascido menos da ilusão vital originária que de sua arbitrária desconsagração. Sendo assim, não cabe dúvida do quanto é necessário diagnosticar esse vácuo em que nos instalamos e no interior do qual parecemos – nós que desaprendemos a ser eticamente – gravitar inutilmente.

Ação comunicativa e conceito estariam, a meu ver, no limiar do que, quem sabe, poderíamos encarar como sendo o despontar de uma 'neo-antropologia', isto é, da oportunidade de se dispor de uma avaliação alternativa dos predicados antropológicos cujo ponto de arranque talvez se resuma a algumas simples interrogações. Arriscando-me um pouco, sugiro serem, pelo menos, três as que poderiam servir o elemento catalisador de uma afirmação (ou potência) de si frente à alteridade que acabe por envolver, em primeira instância e simultaneamente, uma abertura para o (ou salto rumo ao) outro e, finalmente, um investimento afirmador (já em função de um conhecimento razoável de si e do outro) da relação com ele, a saber: i) a que devo me limitar?; ii) o que posso fazer além disso?; e iii) o que é ter uma idéia em? Elas se apoiariam em (ao mesmo tempo que reforçariam), respectivamente, três perícias importantes no que tange à possibilitação didática de um refinamento do humano: o senso de autocrítica, o poder de superação e a capacidade de pensamento. Sob esta ótica – e agenciados, é claro, de maneira competente no que, improvisadamente, chamo de nossos espaços de convivência espontânea (família, trocas lúdicas, círculos de amizade, vizinhança etc.) e de nossos espaços de convivência direcionada (instituições de ensino-adestramento, relações de burocracia, ambientes de trabalho etc.) – poderiam vir a favorecer, decisivamente, a eclosão, na mais tenra idade, de um perfil jovial-sensível-pensante, espécie de imagem-referência para um futuro perfil adulto-esclarecido-atuante segundo um procedimento de dinamização transindividual (de funcionamento simples, porém provisoriamente bloqueado por tiroteios de estupidez endêmica), a meu ver, imprescindível para uma ininterrupta requalificação do tônus social.

 

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Diante deste quadro, urge elaborar uma reflexão (ou antes, um produção de pensamento) que esteja, de fato, à altura de problemas tão sofisticados. Em minha opinião, deve-se evitar atalhos óbvios como o comodismo e becos sem saída como o do ceticismo e do relativismo. Em primeiro lugar, porque não resolvem nada e/ou não levam a lugar algum. Ao contrário, favorecem um confinamento psicológico que, reforçado pelo isolamento físico típico das megalópoles, inviabiliza qualquer possibilidade de ação solidária ou coletiva. De qualquer modo, tal quadro tem a ver com um outro mais amplo e abrupto: o do esquecimento confinante com sua conseqüente perda de poder de intervenção e interlocução. Esquecimento de si e perda de capacidade de abertura para a alteridade a reboque do afrouxamento dos grandes regimes (do Ser, de Deus e do Homem) que tradicionalmente propiciaram a nossa marcha para a atual configuração. Há uma segunda sensação deveras incômoda no ar: a de que ninguém se predispõe, hodiernamente, a assumir qualquer responsabilidade pelas conseqüências de seus atos... Viveríamos, para valer, uma perigosa aventura? Estaríamos, hoje, no plano inconsistente de uma socialidade 'associal', quase que à deriva, entregue ao deus-dará?

É inegável que se trata de um quadro assustador. Passeando pelas ruas, o flaneûr (se é que se pode chamá-lo assim tamanha a pobreza de sua experiência de contato) pós-utópico, longe de se deparar com olhares vivos e semblantes plenos de energia pulsante, tem a impressão de estar perdido em meio a zumbis, numa cidade-fantasma, semelhante à de um desses videogames em moda, só que incomparavelmente mais caótica e barulhenta. Jejum de pensamento e sensibilidade. Rostos que não são outramente e que, ao contrário, feito máscaras insossas não manifestam qualquer indício de um conatus essendi. Apatia que implicará, possivelmente, num iminente enrijecimento na aplicação da Lei (maior vigilância, repressão, punição, intolerância).

Num nível, sem dúvida, microscópico, mas já suficientemente aferível, talvez o único aspecto positivo seja um certo acolhimento do diferente (apesar disso se dar antes como uma possibilidade do que como uma prática, antes como uma intenção do que como um exercicio). Por outro lado, sabemos que as diferenças, embora não sejam, nelas mesmas, hierárquicas (ou hierarquizantes), podem sempre vir a sê-lo, desde que manipuladas com cinismo. Para tanto, vale a pena refletir, atentamente, sobre as relações (na esteira de um Foucault, por exemplo) entre as práticas e os discursos, atuando estes ultimos, quase sempre, como uma cortina de fumaça (uma justificação de fundo moral-ideológico) para nossos atos violentos.

Mais do que os regimes já referidos – o do Ser, o de Deus e o do Homem – o que, de fato, esquecemos e desperdiçamos hoje, em termos de visibilidade, na algazarra do pós-tudo, são suas histórias mais determinantes, suas lições mais esclarecedoras, quando, inexplicavelmente, deixamos com que se embaralhem e confundam com ficções pré-fabricadas, segundo os interesses e ao bel-prazer de quem as engendra, ganhando com isso às nossas custas. Não consigo nem sentir nem pensar: um hiato me paraliza. Onde estou? Onde está o outro? Sinto que sinto. Penso que penso. Sinto sem pensar. Penso sem sentir. Na verdade, as sensações me chegam como torpedos teleguiados, que me atingem abaixo da linha d'água. O casco inevitavelmente se racha e faz de meu naufrágio uma questão de tempo. Já não me conecto com um de-fora surpreendente. Antes me introjetam doses controladas de loucura e euforia. Já não me permito construir realidades. Penso que sinto, mas não sinto. Sinto que penso, mas não penso. Em verdade, o pensamento deixou de conter arte. Virou uma monotonia, uma fórmula infinitivamente desdobrável. No mundo dos simulacros, sentir e pensar deram-se as costas. Viraram o luxo de uns poucos e o desperdício da maioria.

 

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Afirma Argan, num de seus ensaios, que "quando fal(a) de morte da arte, fal(a) do fim de uma experiência do mundo tornada possível por determinados meios, hoje progressivamente abandonados e, em cuja origem, estão os sentidos, em parte, postos de lado pelas novas experiências estéticas". Se considerarmos válida a sua colocação, o que dizer da real situação da arte no contexto das tecnologias avançadas, diante da hegemonia do binômio ciência-economia e suas marcas operacionais: velocidade, produtividade, eficiência, seriação, objetividade etc? O que ela pode – enquanto uma atividade eminentemente criativa sendo, aos poucos, minada, absorvida e expulsa por um sistema produtivo – reprodutor de si mesmo? O que ela já não pode relativamente às novas condições da pragmática do mundo? O que ela ainda pode contra o ornamento (configuração repertorial da cultura), contra o consenso (problematização geral da linguagem) e contra o acordo (mania de neoliberação política)? Ou contra os três instrumentos (ou meios) tradicionais de codificação: a lei, o contrato e a instituição? Enfim, o que pode ser feito para resgatar suas forças no que tange à atualidade do presente?

O que é preciso buscar com cuidado, procurar, pressupondo não uma continuidade pura e simples, mas a presença maciça de fissuras, interrupções e fendas entre a arte e aquele binômio (ou antes, entre a instância ética e as demais)? Só há um rosto possível para a arte no cenário atual, nos termos de uma reversão da crise tecnicista. Uma arte potencializadora do humano do homem seria aquela que, em vez de celebrar ou ilustrar o real e seus jogos de efeito, interviria no grão da realidade ao mesmo tempo que nos capacitaria para o pacto simbólico. Uma que, em pleno limiar da pós-modernidade tecnicista – época em que a arte talvez, finalmente, perca sua dimensão projetual – favoreça o reconhecimento social da criatividade (não apenas o individual e nos termos atualmente vigentes). Uma que estabeleça uma tensão interessante com a hipótese de seu próprio fim ou morte (outrora com Hegel, agora com outros, entre eles, Danto), afastando, de vez, os efeitos colaterais do anunciado desarmamento ideológico planetário e da definitiva desmobilização política dos artistas.

Se pensar for mesmo criar, como quiseram Deleuze e Guattari, e criar for mesmo resistir, não se conformar com o 'já-dado', com as ritualizações, as padronizações, as burocracias e os artifícios mais atrevidos do pensamento único, não resta dúvida quanto ao poder de fogo privilegiado dos artistas. Produzir (fazer e deixar a arte acontecer), fruir (ler as obras enquanto um fluxo auto-renovável de acontecimentos), contextualizar (lidar com o que acontece como um procedimento sempre rearticulável): eis a natureza expressiva da comunicação. Falar (e deixar falar), ouvir (e deixar ouvir), agir (e deixar agir): o que se cria tem um valor e uma intenção de fundo político, e ainda – e essa foi a principal contribuição das vanguardas históricas – uma dimensão e um alcance contra o instituído. Cabe à arte revolver tal fundo. Trazê-lo à tona. Trincar com ele as superfícies. Libertá-las, enfim, de sua previsibilidade.

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* Filósofo, comunicólogo, ensaísta e poeta. Leciona Estética e Teoria da Comunicação na Escola Superior de Desenho Industrial da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ESDI/UERJ).


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