Sincronía Invierno 2001


A Maggot: a ficção como leitura alternativa do passado histórico

Shirley Carreira

UNIGRANRIO


 

A metaficção historiográfica trouxe à baila, no âmbito da literatura, uma discussão levantada pela Nova História, isto é, o caráter hegemônico dos registros que serviram de base à História Tradicional. Ao apropriar-se do passado histórico, de seus documentos, inserindo-os na ficção, Fowles não busca a legitimação do seu discurso, mas desafia o conhecimento que seus leitores têm do passado, bem como o conceito de "verdade". Através da tessitura de um romance que incorpora outros tipos de texto, Fowles deseja mais que uma mera manipulação da forma, pois desconstrói antinomias, abrindo espaço para a multiplicidade e a diferença.

Palavras-chave: metaficção- história-intertextualidade

 

A relação entre o fato histórico e o evento que o gerou tem sido alvo de amplas discussões entre filósofos, historiadores e críticos literários. Essas discussões, obviamente, transitam pela antinomia verdade/mentira, assim como enfatizam o caráter interpretativo da ótica de quem narra o fato histórico.

Em Tropics of discourse, Hayden White afirma que é um consenso entre os teóricos da historiografia o fato de que "todas as narrativas históricas contém um elemento irredutível e inexpugnável de interpretação"  (1). Ora os registros históricos oferecem mais do que pode ser registrado na representação narrativa de um dado segmento do processo histórico, ora esses registros são deficientes. Quer pela exclusão de alguns dados ou pela inferência de outros, o historiador interpreta os materiais dos quais dispõe.

Leopold Van Ranke (2) defendia "o olhar inocente" do historiador, isto é, a sua imparcialidade diante do fato histórico. Durante o século XIX , quatro dos maiores teóricos da historiografia, ou meta-historiadores, segundo Hayden White, rejeitaram o mito da objetividade da histórica instaurada por Ranke: Hegel, Droysen, Nietzsche e Croce. Cada um ao seu modo, esses quatro teóricos contestaram o rigor científico da abordagem histórica dos fatos, defendendo o caráter interpretativo como a "alma" da historiografia.

Os filósofos contemporâneos, por sua vez, têm-se filiado a duas grandes vertentes. A primeira, que envereda pela convicção de que a visão poética e a visão científica são mais diferentes que semelhantes, investiga a extensão do caráter interpretativo na narrativa histórica. Essa vertente pressupõe que a interpretação é mero reflexo da opinião e, portanto, não pode ser cientificamente considerada objetiva.

A segunda vertente explica os eventos que geram os fatos históricos através da codificação narrativa de uma estória que jaz subjacente a esses eventos, recontando-os sob uma forma literária que de modo algum pode ser considerada anticientífica.

Os críticos da historiografia como disciplina têm tomado uma posição ainda mais radical quanto à questão da interpretação na história, chegando mesmo a afirmar que as narrativas históricas não são nada mais que meras interpretações de eventos, ou acontecimentos empíricos.

Em meio a essas diferentes opiniões acerca da legitimação do caráter interpretativo da história, todos os estudiosos das relações da história com a antinomia verdade/mentira concordam que a interpretação do fato histórico é uma questão de ótica pessoal do narrador, uma vez que sua postura ante os fatos gera tipos diferenciados de historiografia.

Em A razão na história, Hegel (3) faz distinção entre três tipos de historiografia em função da postura do narrador ante os eventos: a história primitiva, a história reflexiva e a história filosófica.

A história primitiva pressupõe a participação do historiador nos eventos que geraram o fato histórico. O historiador transforma "numa obra de representação para representação os acontecimentos, os atos e situações do seu presente"(12), não aduzindo reflexões ao seu relato.

A história reflexiva não tem o caráter de presencialidade e é produto da elaboração do historiador, da sua reflexão sobre os acontecimentos e pode ser dividida em quatro tipos: sinótica, pragmática, crítica e conceitual. O primeiro é denominado sinótico graças ao seu caráter sintetizador de longos períodos da História Universal. O segundo é o tipo de abordagem histórica que pretende proporcionar instrução mediante as experiências da história, pressupondo que se pode aprender algo com o passado, a fim de que os mesmos erros não se repitam no presente. O terceiro tipo é uma apreciação das narrativas históricas e a investigação da sua verdade e credibilidade. O último tipo aborda segmentos da História Universal, como, por exemplo, a história da arte, da religião e do direito.

A história filosófica investiga o fim último, a razão absoluta que rege os acontecimentos.

Os modelos de historiografia propostos por Hegel pressupõem, também, historiadores diversos. Uma vez que o século XX trouxe à baila a questão da narrativização da história e que uma das variações do gênero romance mais marcantes da contemporaneidade é a metaficção historiográfica, propomos uma análise dos narradores de A Maggot, de John Fowles (4), e a sua relação com a antinomia verdade/mentira na economia do romance.

A reapropriação dos discursos do passado na obra de Fowles nada mais é do que uma intensa relação intertextual com a herança literária, a qual aborda com olhar contemporâneo e experimentalismo formal.

A metaficção historiográfica não contém os ingredientes de uma narrativa histórica ou de um romance histórico. Há que fazer, pois, diferença entre eles. A narrativa histórica, segundo as vertentes modernas da historiografia, contém os registros dos acontecimentos empíricos que, somados à inferência do historiador quanto aos dados não registrados, constituem o fato histórico. O romance histórico, por sua vez, procura respeitar a cronologia e o teor dos fatos históricos, imprimindo-lhe a inferência ficcional do autor sobre esses fatos. A metaficção historiográfica constitui uma releitura do passado sob a ótica contemporânea, ensejando uma leitura crítica do passado à luz do conhecimento do presente.

Hutcheon (5), que criou o termo, define metaficção historiográfica como sendo "romances famosos e populares que, ao mesmo tempo, são intensamente auto-reflexivos e, mesmo assim, de maneira paradoxal, também se apropriam de acontecimentos e personagens históricos".

Para Hutcheon, a atitude pós-moderna enseja a instalação e a subversão dos conceitos que o pós-modernismo desafia. Enquanto prática estética, o pós-modernismo é um diálogo com o passado da arte e da sociedade, que se manifesta através da autoconsciência teórica sobre a história e a ficção como criações humanas. Sendo assim, os conteúdos e as formas do passado são reelaborados a fim de revelar os limites e os poderes do conhecimento histórico.

Nesse olhar que o pós-modernismo lança ao passado, há um paradoxo, pois revela a contradição entre o ficcional e a referência histórica sem tentar resolvê-la. O pós-modernismo recorre à história para evidenciar o estatuto ficcional do texto. A história como a conhecemos é, também, um construto discursivo, ao qual a ficção recorre tanto quanto aos textos literários propriamente ditos. Embora tenha como referente o acontecimento empírico, o fato histórico só é acessível ao homem sob a forma textual. É assim que temos acesso ao passado, através dos seus textos. (6)

Ao transpor para o romance as contradições inerentes ao mundo empírico, Fowles nos revela a necessidade do homem de construir absolutos, ainda que não correspondam ao real. O mundo ficcional que Fowles constrói tem uma relação paródica com a manipulação da forma discursiva. Fowles suscita no plano do enunciado questionamentos equivalentes àqueles que introduz no plano da enunciação. Se, em A Maggot, as personagens buscam desesperamente a verdade, para depois concluir que ela depende de uma ótica pessoal, que na realidade há muitas verdades, no plano da narrativa Fowles faz o mesmo, levando o leitor a refletir sobre a história, suas relações com a ficção e a tendência do homem a construir absolutos, que se revelam tão frágeis quanto o limite entre a verdade e a mentira.

O enredo do romance é, à primeira vista, detetivesco. O primeiro capítulo começa com a descrição das cinco personagens principais em plena cavalgada, dirigindo-se a uma hospedaria. Quatro são homens. A única mulher do grupo está sendo levada para um encontro muito especial, com alguém cuja identidade não é mencionada.

Há um cuidado especial do narrador no sentido de evitar a identificação nominal das personagens, às quais se refere por meio de detalhes citados na descrição, como sexo, idade e traje. Portanto, Rebecca, a protagonista, é "the girl", Dick é identificado como "the bare—headed man in jerkin", Lacy é apenas "the older gentleman", Jones, "the man in the faded scarlet coat" e Mr Bartholomew- que vai à frente- é, significativamente, "the man".

A negação da identidade que se instaura aí é um importante contraste para a ação posterior da protagonista, que buscará por todos os meios, reafirmar a própria identidade. Igualmente, a insistência do narrador em revelar que as personagens viajam em silêncio, "como se todos estivessem perdidos em mundos separados", é um indício da discussão que o romance propõe acerca das percepções individuais da "verdade".

Ainda no primeiro capítulo, o leitor tem uma vaga idéia da fisionomia de Rebecca, "uma jovem, pouco mais do que uma criança, pálida, de cabelos negros, severamente atados sob o chapéu". Um pormenor significativo é a ênfase dada a sua vestimenta. O chapéu que usa é do mesmo tipo daqueles usados pelas camponesas e o fato de vestir um avental leva o narrador a concluir que "ela é evidentemente uma empregada" :

Such a chip or wheat-straw hat is worn by every humbler English country-

woman. A little fringe of white also appears beneath the bottom of her cloak:

an apron. She is evidently a servant, a maid.

AM, 10

Essa conclusão, assim como muitas outras ao longo da narrativa, comprovam o que parece ser o "jogo" do narrador: lançar pistas e desfazê-las sucessivamente, instaurando um clima crescente de incertezas.

A chegada à hospedaria reserva ao leitor a revelação de que o homem mais idoso do grupo é um ator, contratado para se fazer passar por tio daquele que parece ser o líder do grupo, Mr Bartholomew. O diálogo entre os dois revela que estranhas relações unem aquele grupo.

A essa altura Rebecca Hocknell está em um aposento humilde e o narrador , que relata os acontecimentos sob uma ótica contemporânea, desfaz sua conclusão precipitada de que ela seria uma empregada, esclarecendo que, embora no curso da história o tipo de chapéu que ela usava tenha sido associado à criadagem, no contexto histórico da diegese tanto as damas quanto as criadas o usavam. Assim, reafirma, indiretamente, sua ignorância acerca das personagens e a sua interpretação deficiente dos hábitos do passado. Esse é um dado que reforça o tratamento que Fowles dá à história, o qual passa por uma defasagem entre o acontecimento empírico e o seu reconhecimento como fato histórico.

O desenrolar da ação revela que Dick é surdo mudo e tem uma obsessão desesperada por Rebecca, que, em contrapartida, só tem por ele um profundo sentimento de compaixão.

Em conversa na hospedaria, Bartholomew diz que a mulher que o acompanha está sendo levada para ficar a serviço de sua tia, mulher riquíssima, que necessita de uma dama de companhia. Primeiramente identificada por Farthing- "he of the scarlet coat- como Louise, em seguida, como Fanny, por Mr Bartholomew, Rebecca se torna o centro de um mistério crescente, que leva o leitor a ler compulsivamente o romance em busca de respostas. É claro que o mistério que ela representa não reside nela mesma, mas nos propósitos de Mr Bartholomew, aos quais serve como instrumento. Mas, de um modo ou de outro, é no cumprimento do seu papel que Rebecca confere a si mesma um significado.

Bartholomew, por fim, revela a Lacy que Fanny não é uma criada e que tenciona ir ao encontro de uma pessoa que representa para ele o que a Musa representa para um poeta. Assim como não se pode dizer que a inspiração que gera a poesia é uma mentira, tudo o que Bartholomew inventa para atingir o seu objetivo passa a ser verdade no contexto do seu imaginário, como é possível observar no exemplo a seguir:

‘Do we say a poet lies when he speaks of

meeting the Muses?’

‘We know what he intends to convey by that

figure.’

‘But do we say he lies?’

‘No.’

AM,42

Em sua conversa com Lacy, Bartholomew também diz que o relacionamento entre Dick e Fanny - isto é, Rebecca – é absolutamente normal e esperado entre marido e mulher. Tanto Lacy quanto o leitor sentem-se em meio a um turbilhão de revelações desencontradas, que são nada mais nada menos que peças de um quebra-cabeças, que parece reduplicar-se em espelho. Fowles elabora um jogo, que contém o jogo do narrador, que, por sua vez, contém o jogo de Bartholomew. A imagem do espelho, inclusive, é citada formalmente pelo narrador, ao dizer que Bartholomew e Dick partilhavam um canal de comunicação muda: " The two men stand in their silence, in each other’s looking, as in a mirror (AM, 45).

Mais tarde, há o encontro entre Rebecca e Bartholomew e o leitor descobre que ela é uma das prostitutas do bordel de uma certa Claiborne, a quem ele pagou pelos serviços que a jovem há de lhe prestar. Esses serviços estão associados ao voyeurismo de um impotente, que, sadicamente, humilha e oprime Rebecca por não poder tê-la para si. Nesse ponto da narrativa, é significante a intrusão do narrador contemporâneo, que observa em Bartholomew um "sadismo antes de Sade, que só iria nascer quatro anos depois, nos escuros labirintos do tempo real"(49).

Delineia-se assim a história de Rebecca, que por ter sido seduzida, ainda bem jovem, pelo filho do patrão, fora posta para fora do emprego. Como não podia retornar para casa, dado o fato de seu pais serem Quakers, que jamais aceitariam a filha nessa condição, procurara outro emprego, que viera novamente a perder devido ao assédio do novo patrão. Sem escolha, tornara-se prostituta do bordel.

Surpreendemente, em meio a conversa, Bartholomew beija a mão de Rebecca, num ato repentino de carinho, e justifica-se, dizendo que o faz em agradecimento ao que ela há de proporcionar-lhe. Como ela fica confusa, ele fala de águas milagrosas que hão de curá-lo e do presente que ela própria será para os possuidores de tais águas. Ele pede, também, que ela não se impressione com a aparência dessas pessoas, pois vêm de um outro país e falam outra língua. Pede, ainda, que ela se comporte como uma virgem, que finja inocência e um total desconhecimento do sexo. Aliás esta fora a razão de sua escolha. No bordel, ela recebera a alcunha de Quaker Maid, em alusão a sua facilidade de fingir ser pura e casta.

Essas advertências, à primeira vista, fazem o leitor supor que ela participará de uma orgia, suposição esta que será desfeita posteriormente.

Neste ponto a narrativa é interrompida por uma página da Historical Chronicle de 1736, seguida de uma nota, forjada, do jornal Western Gazette, datada do mês de junho do mesmo ano, dando conta de que um jovem fora encontrado morto; aparentemente um suicídio por enforcamento. A nota diz, ainda, que o jovem era servo de um certo Mr Bartholomew, que havia passado por aquelas paragens, com mais três pessoas, em abril, sem que se tivesse notícia posterior do mesmo ou de seus companheiros. Há, segundo a nota, suspeita de que o jovem tenha assassinado seus companheiros de viagem e depois se enforcado, em um acesso de loucura.

A partir daí, a narrativa dá vez a uma série de interrogatórios, que investigam a morte de Dick e o sumiço das outras personagens.

Nesses interrogatórios, cada uma das testemunhas dá a sua versão dos fatos. Lacy, dentre outros é chamado a depor e dá o paradeiro de Jones, que havia desaparecido, uma noite, da hospedaria, sem avisar aos demais. Assim, Ayscough, o advogado contratado pelo pai do suposto Bartholomew para investigar o seu desaparecimento, descobre que Rebecca está viva, pois fora vista por Jones.

Duas estórias vão, então, se delineando: a de Jones, que afirma terem as outras personagens participado de um ritual demoníaco, e a de Rebecca, que afirma ter visto, dentro da caverna, uma "larva"- prontamente identificada pelo leitor como uma nave espacial; ter sido levada ao seu ventre e ter visitado um lugar edênico- June Eternal.

Nenhuma das duas versões dá conta do desaparecimento de Bartholomew, que fica no âmbito das suposições, ou explica a morte de Dick.

A Maggot se apresenta como uma mistura heterogênea de vários tipos de documentos, privilegiando os meios pelos quais a história é transmitida. Fowles alterna os segmentos de uma narrativa tipicamente realista com as reflexões discursivas de um narrador autoconsciente. Incorpora, também, documentos autênticos junto a outros forjados pelo autor. A estrutura da narrativa é híbrida e relacionada ao tratamento dado à história.

O romance é dialógico e polifônico, um aglomerado de discursos, vozes e pontos de vista diferentes. A estória, que se quer história, é relatada pelo narrador e pelas personagens que dão o seu testemunho a Ayscough. No entanto, o leitor não tem acesso aos fatos em sua totalidade. Na realidade, os depoimentos são o que Chatman (7) denomina antinarrativas, porque chamam a atenção para a lógica da narrativa, em que uma coisa leva à outra e esta a uma outra e assim por diante.

Nos termos do formalismo russo, a recusa de Fowles em conceder uma solução para a morte de Dick e o desaparecimento de Bartholomew tem por finalidade impedir que o leitor solucione a fabula, isto é , a soma total dos eventos, a partir do sjuzet, o enredo conforme é apresentado ao leitor. Os relatos do narrador e das personagens não só pecam por não esclarecer o que realmente aconteceu, como também não permitem que se estabeleça uma unidade de significado. O problema não é a falta de informações, mas a credibilidade das mesmas.

Embora o enredo tenha sido montado sobre a estrutura de uma estória de detetive, que segundo Todorov, prioriza a fabula em detrimento do sjuzet, em A Maggot o interrogatório não é um simples mediador entre o leitor e a estória do crime. Fowles destrói essa hierarquia , porque o seu "detetive" falha e os pormenores do crime não podem ser determinados com acuidade empírica. Assim, apenas o sjuzet tem importância intrínseca.

O narrador não tem onisciência espacial e psicológica e é tão alheio aos motivos que impelem a conduta das personagens quanto o próprio leitor. Na realidade, as pequenas incursões do narrador , aliadas aos depoimentos das diversas personagens, além do prólogo e do epílogo, formam um encadeamento que culmina não na elucidação do crime, mas na conclusão, que o próprio leitor constrói, de que tudo o que leu reflete os conflitos entre verdade e mentira, fatos e crenças e as diferentes formas de apreensão da verdade. Assim como a verdade no universo ficcional não pode ser reconstruída baseada em relatos formais, a própria história é obscura, pois só temos acesso a ela através de relatos não mais confiáveis do que os apresentados no romance.

A construção de uma ficção dentro de outra corresponde a um nível metadiegético, segundo Genette (8), pois ele é constituído pela enunciação de um relato a partir do nível intradiegético, isto é, do universo ficcional onde as personagens transitam.

Se partirmos da base teórica que Genette nos oferece, em sua narratologia, poderemos estabelecer o seguinte diagrama:

 

Nível extradiegético

Leitor Autor Narrador

______________________________________

Nível intradiegético

Ayscough(advogado)

_____________________________________

Nível metadiegético

Testemunhas(ordem dos depoimentos)

Thomas Puddicombe Diegese

Dorcas Hellyer

Sampson Beckford

Francis Lacy

Hannah Claiborne

David Jones

James Wardley

Rebecca Lee

No nível extradiegético estão o autor, o leitor e o narrador, cada qual com seu estatuto ontológico. No nível intradiegético, o narrador é o advogado Ayscough, embora indiretamente, através do conteúdo dos interrogatórios e de suas cartas. No nível metadiegético, há um encadeamento de vozes autorizadas, as testemunhas, cada qual completando o relato da anterior, das quais a mais importante é Rebecca, a protagonista, que exerce a função de persona do ficcionista.

As testemunhas apresentam seu depoimento com o "olhar inocente" do narrador que é testemunha da história, o qual corresponde ao que Hegel classifica como historiador primitivo. Ayscough, por sua vez, age reflexivamente, selecionando as informações obtidas, tentando depreender a verdade em meio a possíveis mentiras, a fim de informá-las à "Sua Graça", o seu patrão. E, mais importante que isso, acrescentando a essas informações as suas conclusões pessoais, que muitas vezes induzem o leitor a modificar as suas próprias conclusões.

Os depoimentos que se sucedem contam os fatos do ponto de vista de seus narradores e, portanto, ora são complementares, ora são divergentes. O temas que são tratados ao nível da narração se repetem no discurso.

O romance apresenta Rebecca e Ayscough como a personificação das antinomias que se instauram ao longo da estória.

Essa tensão dialética no nível discurso se reflete na montagem dos diversos tipos de texto que constituem a narrativa. A Maggot é intensamente intertextual. No diálogo que o romance tem com o passado fica claro que a pretensão do autor não é reescrever a história, mas mostrar como ela poderia ter sido.

No prólogo de A Maggot, Fowles explica que o romance surgiu de sua obsessão por uma imagem: viajantes a cavalo através de uma paisagem árida. Essa "larva"- maggot- desenvolveu-se tempos mais tarde, quando adquiriu um retrato em aquarela de uma linda jovem desconhecida, datado de 1683. A fascinação por aquele rosto imortalizado na pintura e uma admiração igualmente forte por Ann Lee, líder religiosa dos Shakers, o levou a escrever o romance.

Da imagem que o perseguia, passando pelo retrato da jovem já morta, até chegar à personagem histórica, houve uma verdadeira metamorfose. A ambigüidade do título é sugestiva.

Como Fowles esclarece no início do prólogo, "a maggot" é a fase larvar de uma criatura com asas, da mesma forma que o texto escrito o é, ao menos na esperança do escritor. No entanto, também pode ser um capricho ou mania. A obsessão do autor se metamorfoseou no romance, que ele concebeu como obra aberta, em cujas "asas" o leitor poderá voar.

Do mesmo modo que a essência das narrativas autoconscientes jaz no reconhecimento da natureza dupla do texto, o romance de Fowles, ao mesmo tempo em que está enraizado na realidade do tempo histórico, é apresentado como artifício.

A Maggot revela objetivamente como a metaficção historiográfica insere e depois subverte o seu envolvimento mimético com o mundo, desestabilizando as noções de referência por meio da confrontação direta entre o discurso da arte e o discurso da história.

No prefácio de The Timescapes of John Fowles, de Fawkner (9), o próprio Fowles afirma que todos os romancistas compartilham uma força propulsora: um senso permanente de perda, de incompletude, que é atribuído ao mundo em que vivem. Se escrevem, é na ânsia de preencher lacunas, mas, na realidade, ninguém pode recriar o passado como ele foi, dada a incapacidade humana de "conquistar" e reverter o tempo. Tudo o que se pode fazer é inventar um passado que nunca existiu, uma paródia de como o passado poderia ter sido.

Em AM, o conflito de classes, de gênero, e, principalmente, religioso é abordado no intuito de fornecer subsídios para a contextualização histórica.

Em sua primeira carta ao duque, além das notícias sobre a investigação, Ayscough comenta acontecimentos que ocorreram tanto na diegese quanto no mundo empírico: o julgamento do Capitão Porteous e o tumulto causado pela multidão em Shoredith. Documentos da época, "Historical Chronical" e "The Gentlemen’s Magazine", nos dão conta da veracidade dos fatos.

Igualmente, no encontro entre Lacy e Ayscough, há referências a Newgate, a Lincoln’s Inn e a depoimentos sob juramento que foram, obviamente, baseadas nas informações obtidas no documento das páginas 120 e 121.

É importante observar o sentido da inserção desses registros históricos no universo ficcional. A referência histórica não é utilizada com o simples intuito de conferir verossimilhança à diegese, mas, principalmente, com a finalidade de enfatizar a ficcionalidade do texto e a fragilidade dos registros históricos.

Todas as vezes que uma página da "Historical Chronicle" é reproduzida, pode-se esperar uma ligação intrínseca com o que foi descrito nas páginas anteriores, como um alerta ao leitor de que ele está lendo algo que nada mais é do que uma das muitas versões possíveis de acontecimentos do passado.

A inserção do historiográfico com o ficcional coloca em evidência a rejeição das pretensões de representação "artística" e cópia "inautêntica". O próprio sentido da originalidade artística é contestado tanto quanto a transparência da referencialidade histórica.

Fowles incorpora personagens históricas à ficção em AM. Lacy, Wardley e Ann Lee, dentre outros, existiram no mundo empírico. Dos dois primeiros o autor nada sabe; de Ann Lee, ele seleciona traços que possam adicionar significado à sua obra. Ann não aparece no romance, senão no final, como a filha recém-nascida de Rebecca, na qual a protagonista deposita esperanças que só se cumprirão através da Ann histórica, no mundo empírico.

Indubitavelmente, Fowles empresta à Rebecca características da personalidade da verdadeira Ann Lee. O romance revela a admiração do autor pela Ann histórica e esclarece que, embora possa parecer estranho que um ateu dedique um romance a uma forma de religião, ele o faz impulsionado não só pelo carisma de Ann Lee, como também pela sua determinação. Ao fundar uma religião cujo intuito maior era combater as desigualdades sociais, ela contrariou todas as convenções da sua época e rejeitou, com dignidade, todos os padrões impostos.

A seita por ela fundada tem sido considerada doutrinariamente ingênua, fanática, comunista, supersticiosa e contundentemente feminista. Para Fowles ela é, acima de tudo, fascinante, dada a natureza da sua teologia, que, de algum modo, parece esboçar a relação da ficção com a realidade. Assim como o Shakerismo, e Fowles refere-se a isto no epílogo, a ficção também tem uma lógica interna que vai além do que podemos estabelecer como "real". A realidade da ficção apóia- se no pacto de verossimilhança, que consiste no abandono consciente, por parte do leitor, dos códigos do mundo empírico e na aceitação, sem reservas, dos códigos da ficção.

Em AM, Fowles escreve um epílogo que pretende explicar a sua escolha em termos de referentes históricos. Isso faz com que o leitor seja induzido a crer na versão que Rebecca oferece a Ayscough. Assim, não só sua estória passa a ser aceita, como também passa-se a admitir a existência de uma nave espacial e a crer na divindade de Bartholomew.

No entanto, o fato da narrativa ser interrompida na ocasião do nascimento de Ann evita um comprometimento com o passado histórico, que, conforme o epílogo esclarece, evidencia o caráter ficcional do texto.

Ao permitir que Ayscough chegue ao final da narrativa sem uma pista sequer que confirme a estória de Rebecca ou prove ser ela totalmente forjada, o autor procura conferir ao leitor a liberdade de escolha. Assim como Ayscough descrê da estória que ela lhe conta, é facultado ao leitor a mesma possibilidade, que, aliás, nos parece mais plausível, uma vez que no conjunto da obra de Fowles a criação é o equivalente da liberdade.

Não é por acaso que AM é concebido como uma estória de detetive e é, em seguida, subvertida. Ao invés das convenções do gênero, isto é, a lógica e a ordem necessárias ao leitor para conferir inteligibilidade à obra, Fowles reveste o seu texto do ilógico, da desordem, de modo a, propositalmente, desnortear o leitor. O que deveria ser uma estória detetivesca passa a ser, repentinamente, um relato do fantástico.

As diferentes versões apresentadas por Jones e Rebecca são uma metáfora da própria ação do escritor, que reconta as estórias que povoam o imaginário do homem. O mérito do contador de estórias é narrar diferentemente o que é reconhecidamente igual, conforme afirma Borges em Dr Bodie’s Report(10): "The essential stories of man’s imagination had long since been told and by now the storyteller’s craft lay in rethinking and retelling them (p.123)."

Ao estabelecer um diálogo entre presente e passado, ficção e história, verdade e mentira, Fowles busca provar que o limite que separa os elementos dessas antinomias é tênue, que pode ser construído e destruído pelo homem, cujo poder criativo transcende os limites da sua própria existência finita.

O olhar que a metaficção historiográfica lança ao passado é desafiador, não no sentido de querer afirmar que ele nunca existiu, mas de revelar que os critérios estabelecidos pelo homem para relatar suas experiências concretas dependem de uma ótica pessoal, que, por sua vez, torna o conceito de verdade e o estatuto do fato histórico discutíveis ante a pluralidade do olhar humano.

Notas

1 WHITE, Hayden. 1978, p.5l.

2 Idem. p.52.

3 HEGEL, George W. Friedrich. 1995.

4 FOWLES, John. 1991.

5 HUTCHEON, Linda.

6 Poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago Editora,

1991.

7 CHATMAN, Seymour. Story and discourse: narrative structure in fiction and film.

Ithaca, Cornell University Press,1978.

8 GENETTE, Gérard. Figures III. Paris: Éditions du Seuil,1972.

9 FAWKNER, H. W. The Timescapes of John Fowles.Toronto: Associated University

Press, 1984.

10 BORGES, Jorge Luís. Dr. Bodie’s report. s.n.t.


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