Sincronía Invierno 2002


O existencialismo de Sartre em sua obra: As Moscas

Bruno Silveira Pires

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas


 

INTRODUÇÃO

 

Esta monografia corresponde ao esforço na busca de uma relação entre a filosofia de Sartre e as influências desta na sua criação literária As Moscas.

Procuro estruturar a minha monografia com uma abordagem panorâmica do existencialismo; a tentativa de reconhecer em Sartre alguns traços de ensinamentos que lhe foram trazidos por outros pensadores e confrontar os ensinamentos de Sartre em sua filosofia (principalmente de O existencialismo é um humanismo) e a sua obra "engajada" politicamente.

As Moscas foi produzido em um momento extremamente conturbado. O domínio alemão tinha apossado-se de Paris. Antigos heróis locais demonstraram sujeição a pressão externa e preferiram entregar a lutar pelo seu território. Sartre busca alguma forma de incitar o povo a lutar. A censura alemã impede qualquer manifestação de repúdio ao seu controle. Nesse cenário esmagador o autor cria As Moscas que aparentemente é um drama grego, porém é uma alegoria da conjuntura política de Paris . Ele achou uma forma de burlar a censura e constranger os cidadãos a rebelarem-se contra o opressor e até mesmo seus compatriotas que "viraram a casaca".

Em O existencialismo é um humanismo, Jean-Paul Sartre defende diante de uma platéia formada por católicos e marxistas que o existencialismo não se trata de uma filosofia pessimista, contemplativa ou passiva. Para ele o existencialismo é uma doutrina de ação. Na medida em que seus ensinamentos dizem que o homem não tem nada e não é nada além do que suas atitudes o fazem ser, ele cria-se como quiser e é responsável por cada uma de suas ações. Esse aspecto de mudança e criação da sociedade e do ser se repete em As Moscas .

As pinceladas da sua teoria filosófica no drama seriam propositais? Sartre acreditava que tudo o que fazemos é consciente. Não seriam apenas para despistar a atenção da censura essas correlações entre a sua filosofia e a peça encenada? Estes são os principais questionamentos que acompanharam a execução desta monografia

 

EXISTENCIALISMO

 

Encontramos sérios problemas no que definimos como Existencialismo. Na própria denominação não há consenso. Jean Wahl chama de filosofia da existência (Wahl,1962, p. 9-10 notas de roda-pé) pois lembra que diversos filósofos conhecidos como existencialistas não aceitariam essa titulação. Também não podemos rotular aqueles que foram enquadrados nessa denominação como se compartilhassem de fundamentos idênticos. De fato eles não apenas divergem como alcançam nítidas oposições.

Certamente não podemos encontrar uma essência nessa filosofia, que é uma filosofia que nega a essência. Diante de tal desafio propomos uma tarefa mais simples neste estágio: apresentar um panorama da filosofia de Jean Paul-Sartre. Analisemos aqui algumas das principais influências dentre os existencialistas na sua filosofia. Dentre os existencialistas mencionemos Kierkegaard, Hurssel e Heidegger.

Para Jean Wahl, Kierkegaard recusaria a expressão "filósofo da existência"; não recusaria a palavra "existência", mas sim a palavra "filósofo". Ele era um homem religioso que viveu intensamente a fé luterana. Viveu obcecado pelo sentimento de culpa (Penha, 1996, p. 14) e rompeu com sua noiva Regina Olsen; fato que gerou grandes reflexões em sua vida. A filosofia de Kierkegaard surge como reação ao hegelianismo que considerava o indivíduo apenas como uma face, das muitas, de um grande sistema geral.

O dinamarquês Kierkegaard, exaltava o concreto, o singular, o homem enquanto subjetividade. Dividia a existência do homem em três estágios: 1) o estético, nele o homem busca a sua satisfação sensorial, liberdade e imediatismo. Porém ele age sem parâmetro e isso o leva a percepção de que não tem uma revelação satisfatória do sentido de sua existência. 2) o indivíduo é levado pelo desespero a uma busca de sentido que o conduz ao estágio ético em que ainda é mantido o individualismo, porém nesse estágio ele percebe que tem responsabilidades com a sociedade que o cerca. 3) O homem atinge o ponto culminante de sua existência no estágio religioso em que ele enxerga a sua existência regrada pelo Absoluto, Deus torna-se a regra do indivíduo acima da razão e da ética.

Outro importante filósofo do existencialismo foi Edmund Hurssel. O criador do método fenomenológico. Matemático de formação. Procurava tornar a filosofia uma ciência universal com um estatuto do saber. Critica a visão positivista de que a realidade é aquilo que percebemos com os sentidos. Hurssel busca na fenomenologia uma terceira via fora dos conceitos: matéria ou idéia. As idéias só existem porque são idéias sobre coisas e os dois constituem um único fenômeno indivisível. Para "compreender", ou perceber a realidade deve-se suspender todo o juízo sobre os objetos observados. Essa atitude denomina-se "redução fenomenológica" ou "epoquê" que consiste em um repouso mental, de acordo com o sentido de epoquê na filosofia medieval.

Martin Heidegger, discípulo de Hurssel, é o primeiro a utilizar o método fenomenológico como instrumento de análise. Não aceita a denominação existencialista para sua filosofia. Ele a denomina analítica existencial. " A analítica existencial não demonstra nenhum interesse pela existência pessoal, e os problemas dela oriundos"(Penha,1996, p. 26) Em Ser e Tempo, seguindo a recomendação hursseliana, o propósito de Heidegger é discutir o Ser, estabelecer uma ontologia geral, descrevendo os fenômenos que o caracterizam tais como se apresentam à consciência. Trata-se enfim de elaborar uma teoria do ser.

Para Heidegger de todas as questões filosóficas, a mais fundamental é a interrogação sobre o Ser. Essa é uma questão primordialmente (no Ocidente em sua história filosófica) tratado no começo da filosofia grega e que foi considerado uma noção evidente em toda tradição filosófica do Ocidente. Mas a questão deve ser discutida, pois na verdade nunca foi resolvida. No entanto Heidegger não percorreu o caminho que ele traçou como prioritário e acabou não demonstrando o que é que ele entendia por Ser.

Ele contribuiu com a visão de autenticidade que caracteriza o ser humano. Mas essa singularidade pode desaparecer quando o individuo aceita tudo o que lhe dizem e age de acordo com a massa; com a perda da individualidade de opinião a pessoa perde a capacidade de aprofundar-se e expressar-se. "o das mau [a inércia, acomodação, aceitação sem crítica de tudo] eis a conclusão heideggeriana, constitui a estrutura essencial das relações sociais privando a realidade humana de uma existência autêntica." (Penha, 1996, p. 33). Uma outra forma de vida sem autenticidade é a vida guiada pelas máquinas nas fábricas, o trabalhador termina por confundir-se com as máquinas.

A morte é um importante tema para Heidegger. Ele acreditava que todos tem a consciência da morte e a de que essa morte ocorre apenas uma vez, isso leva o homem a viver um sentimento de "espera da morte". O fim, destino, curso e sentido da vida é a morte para os indivíduos; segundo Heidegger a morte é o termo final para nossos planos. Estamos na dependência da morte para tudo já que ela é imprevisível e invencível. Para ele as pessoas fogem para uma existência sem autenticidade para fugir da angústia da morte. Mas somente sofrendo essa angústia o homem será autêntico e atingirá a sua plenitude existencial.

Jean Paul-Sartre foi o que teve mais repercussão entre os existencialistas e que divulgou suas teses para um público maior através de sua arte literária em romances e peças teatrais.

Os humanos existem e atribuem a sua existência um significado, ou seja, se constroem livremente já que não há um modelo para o homem ele será o que projetar e seus atos o fizerem ser. Portanto, para Sartre, o destino do homem depende dele mesmo.

A liberdade que o homem tem o permite construir seus próprios valores e portanto ele é totalmente responsável pelos seus atos.

 

A GUERRA

 

A partir de junho de 1940 a França perde a autonomia e a integridade. Pétain assina o armistício com Hitler e o general de Gaulle, na Inglaterra, instiga os franceses a resistirem. A França fica literalmente dividida em norte (resistente) e sul (colaboracionista).

Quando Sartre volta do cativeiro (Stalag de Trier, na Alemanha), graças a um documento falso, percebe o desanimo daqueles que deveriam resistir:

Voltei à França com a idéia de que os outros franceses se não davam conta[... ]daquilo que os que voltavam do front sabiam, mas não havia ninguém para animá-los a resistir. Eis o que me parecia a primeira coisa a ser feita ao chegar em Paris: criar um grupo de resistência, tentar, aos poucos, convencer a maioria das pessoas a participar e assim organizar u movimento de violência capaz de enxotar os alemães (Sartre, citado por Cohen-Solal,1985, p. 225).

Sartre reúne-se com os veteranos do "Sous la Bote", grupo de resistentes, e deixa bem clara a sua posição: "[...] lutar contra o regime de Vichy e qualquer tipo de colaboracionismo" (Cohen-Solal,1985, p. 228). O grupo escolheu o nome Socialismo e Liberdade.

 

DESPISTANDO A CENSURA

 

Em junho de 1943 começa a ser encenada a peça política As Moscas escrita por Sartre e dirigida por Charles Dullin . Sartre pretendia fazer uma parábola que reanimasse o povo francês, pois se fosse explícito sua peça seria vetada. Criou o espetáculo com uma roupagem de drama grego conseguindo, dessa forma, enganar a censura.

Orestes ,o personagem central do drama, é o filho do rei Agamémnon, rei de Argos. O primeiro volta a sua cidade natal já adulto (ele crescera longe de casa) para vingar o assassinato e a usurpação do trono do seu pai. Egisto, o usurpador, juntamente com sua amante Clitemnestra, rainha de Argos e mãe de Orestes e Electra, armara uma emboscada e matara Agamémnon, tomando o seu trono. Os cidadãos apesar de saberem o que pretendia a rainha e seu amante não avisaram o bom rei. Orestes fora mandado para longe e Electra passou a vida como empregada do Palácio.

A cidade está cheia de moscas que representam a culpa dos cidadãos que os consome vivos. Orestes mata Egisto e a sua mãe, Clitemnestra. Electra torna-se sua cúmplice. Os dois fogem para o templo de Apolo onde nem os deuses nem o povo, que neste momento quer matar os dois, podem tocá-los. Lá Electra é atormentada pela culpa, representada pelas Erínias. Orestes não sofre porque não se sente culpado, ele se considera livre.

Na cena final Orestes declara a sua liberdade e que fez o que devia segundo seus próprios olhos. Toma para si os crimes do reino e a culpa do povo. As Erínias caem no seu encalço

Argos representa a França e mais precisamente a França de Vichk. Orestes tem uma difícil tarefa: lutar sozinho contra aquele que tomou o trono e a sua mãe que uniu-se a ele. Sartre queria incitar o povo a resistir e tomar uma posição contra aqueles conterrâneos colaboracionistas. Cohen-Solal apresenta uma visão ainda mais extremada:

‘O drama verdadeiro que eu queria mostrar’, explicará Sartre anos mais tarde ‘era o do terrorista que, matando alemães em plena rua, provoca a execução de cinqüenta reféns’[...] Assumir os próprios atos, sim, mesmo que causem mortes injustas. Contribuir também para acabar com essa ‘doença do remorso, essa complacência com o arrependimento e a vergonha. Dando livre expansão a seu ódio, ele atira uma pedra na água estagnada do marasmo, contra o espírito de Vichy e o auto-flagelo (1985, p. 249)

O drama foi detestado pela crítica e analisado a partir da perspectiva filosófica.

Aparentemente a encenação não produziu muito efeito, mas demonstrou um importante aspecto de Sartre: tal como ele alegava ser a sua filosofia, ele mesmo não vivia na passividade.

 

ENTRE AS MOSCAS E O EXISTENCIALISMO É UM HUMANISMO

 

No ano de 1946 Sartre publica O existencialismo é um humanismo. Essa foi a forma que achou para defender-se das críticas que vinha sofrendo a filosofia existencialista.

Nesse trabalho está descrita a conferência que teve diante de católicos e marxistas. A base de sua exposição constitui-se na afirmação de que a sua filosofia não produz uma atitude de inércia nos seus adeptos. Mas o pelo contrário, produz ação.

Ele diz que o homem constrói sua essência através de suas escolhas. Dessa forma somos totalmente responsáveis pelo que fazemos. Sartre vai mais além e declara que as nossas escolhas implicam no resto da humanidade.

Quando dizemos que o homem escolhe a si, queremos dizer que cada um de nós escolhe a si próprio, mas com isso queremos também dizer que, ao escolher a si próprio ele escolhe todos os homens. Com efeito, não há dos nossos atos um sequer que, ao criar o homem que desejamos ser, não crie ao mesmo tempo uma imagem do homem como julgamos que deve ser (1946, p. 6-7).

Essa responsabilidade provoca a Angústia. Essa surge devido a inexistência de padrões de atitude já que o homem é livre. Porém para tentar fugir da Angústia da escolha o indivíduo atribui a algo a sua responsabilidade enganando-se e deixando enganar-se. Essa atitude é denominada Má-fé.

O Orestes de Sartre tem consciência da sua liberdade e de que não está atrelado a nenhum código moral, valores ou deveres. Ele sente a angústia mas não despreza a sua liberdade: "Sou livre, Electra; a liberdade abateu-se sobre mim como um raio"(1943, p.134). E depois de assassinar Egisto e sua mãe:

Pratiquei o meu ato, Electra, e este ato era bom. Levá-lo-ei aos ombros; como um barqueiro leva aos viandantes, fá-lo-ei passar a outra margem e prestarei contas dele. E quanto mais difícil for de levar, mais contente ficarei, pois é ele a minha liberdade (1943, p. 134).

Desta forma Orestes caracteriza-se como um indivíduo livre que se constrói como quer. Orestes é o fruto de suas escolhas, tem consciência disso e apesar de sentir a Angústia da responsabilidade não foge para uma atitude de Má-fé.

Nesse ponto Orestes aparece como alguém que vive de uma maneira autêntica, de acordo com a visão de Heidegger sobre a autenticidade. Para Heidegger autenticidade corresponde a atitude contrária ao que será chamado de Má-fé por Sartre. Autenticidade é o reconhecimento da Angústia, porém, diferentemente de Sartre, para Heidegger a Angústia surge da consciência da morte e não da responsabilidade como afirmava o autor de As moscas.

Já os outros personagens vivem em busca de um alívio para sua culpa e atribuem a outros a sua condição. Electra não consegue aceitar o remorso e tenta transferir a Orestes a sua responsabilidade como cúmplice caracterizando uma atitude de Má-fé. Egisto, por sua vez, diz que seduziu Clitemnestra e assassinou Agamémnon para o bem da ordem.

 

 

CONCLUSÃO

 

Através destas exposições podemos chegar a algumas conclusões. Podemos afirmar que a obra as moscas encaixa-se, sim, em um projeto de convencimento político e concomitantemente em uma exposição filosófica.

A atitude de "panfletagem" a que Sartre se propôs é bastante nítida, pois na medida em que observamos o seu engajamento contra os alemães e os colaboracionistas percebemos a sua total dedicação.

Não cabe a presente proposta analisar os efeitos práticos das encenações na atitude dos resistentes. O que pretendeu-se apresentar corresponde a confrontação dos argumentos existencialistas e o roteiro do drama estudado. Nesse aspecto pode-se dizer que o objetivo foi alcançado e que elementos mais aprofundados dessa discussão precisam ser mais analisados.

Por fim a sentença se aproxima. Podemos acreditar na intenção política, mas não devemos negar a composição de idéias existencialistas na obra As Moscas. Principalmente no que tange as concepções de Liberdade, Angústia e Má-fé sartreanas podemos afirmar que coexistem com o enredo da peça.

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

PENHA, João da. O que é o Existencialismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996.

PERRY, Marvin. Civilização Ocidental: uma história concisa. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

PÓVOA, J. F. . Angústia e Má-fé na Liberdade Sartreana. Ideação: Núcleo Interdisciplinar de Estudos Pesquisa Filosóficas da UEFS. Feira de Santana. n° 8, p. 95-107, julho. 2001.

SARTRE, Jean Paul. As Mosca. 7.ed. Lisboa: Editorial Presença, 1986.

SARTRE, Jean Paul. O Existencialismo é um Humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

SOLAL, Annie Cohen. Sartre. São Paulo: L&PM Editores, 1986.

WAHL, Jean. As Filosofias da Existência. Lisboa: Publicações Europa América, 1962


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